Chegamos a meio da semana. Por mais repletos que estejam os hotéis e resorts da grande enseada por que se espraia Santa Maria, a vida parece centrar-se no pontão da cidade. Com uma riqueza e diversidade para que não estávamos preparados.
Pescadores afluem ali, vindos do Atlântico translúcido e esmeralda ao largo e descarregam o peixe que capturaram para carrinhos de mão, baldes e grandes caldeiros.
No cimo, peixeiras e peixeiros de há muito, recebem, amanham e pesam a pescaria para as vendas que hão de se seguir.
Parte da madeira do pontão fica escarlate da chacina que ali tem lugar. São esquartejados atuns médios e rolam cabeças de rabilhos.
Partes menos comestíveis de distintos peixes são convertidas em isco.
Geram um aroma piscícola a condizer. Num ciclo fechado de predado e predador em que quase tudo se aproveita, um séquito de jovens pescadores à linha, lança o isco ao mar, em busca de mais peixe.
Fazem-no virados ao sul do arquipélago e ao norte selvagem da praia Atlântida da ilha da Boavista em que, mesmo demasiado distante para dali o vermos, permanece encalhado e castigado pelas ondas, o cargueiro “Cabo Santa Maria”.
Na paz e segurança de Santa Maria, a ilha, atracam outros barcos de passageiros, garridos e com nomes inusitados. Vemos o “Não é Brinquedo Não”. Em seguida, o “Deus Te Guia”. Fazem desembarcar gentes de outras partes do Sal para uma escadaria anfíbia que os eleva à azáfama acima.
Do extremo terrestre do pontão, chegam ainda funcionários dos muitos restaurantes e hotéis em redor. Examinam e negoceiam a pesca exposta com afinco e a concentração possível tendo em conta a abundância de distracções que têm que contornar.
Dezenas de turistas cirandam e metem os narizes e as pequenas máquinas fotográficas e smartphones em tudo o que tenha vida e cor. “Epá, vocês não param quietos!” diz-nos uma peixeira a quem a nossa hiperactividade e proximidade já fazia confusão. “Vocês querem essas fotos para quê mesmo, expliquem me lá que não está fácil perceber.” completa com um sorriso bem salense nos lábios.
Admiramos a paciência inesgotável que os pescadores e peixeiras dedicam aos intrusos, munidos de respostas práticas e sorrisos suaves para qualquer que seja a abordagem.
À margem da pesca e do negócio dela derivado, o pontão serve ainda os propósitos recreativos de uma comunidade inquieta de miúdos e adolescentes.
Vemos um deles, de t-shirt vestida, nadar na nossa direcção. Ao constatarem a atenção que lhe dávamos, um pequeno grupo de amigos atira-lhe os chinelos que tinha deixado sobre o pontão.
Primeiro um. Depois o outro. Espaçados, de maneira a atrapalharem a sua natação e o envergonharem.
Mais abaixo, malgrado uma quase total ausência de vagas, dois miúdos entretêm-se a dar rodagem às suas pranchas de bodyboard.
O Pontão e a Ponta de Vera Cruz: uma Fronteira no Litoral de Santa Maria
A quem, como nós, chega de longe, o pontão de Santa Maria tem uma função adicional que aprendemos a valorizar. Divide a baía ampla quase pelo meio.
No ponto em que nos entrega ao solo arenoso da ilha, ficamos com a casa branca e vermelha de Viana pela frente. Encontramo-la fechada, uma mera sombra de história que alguns vendedores aproveitam para se protegerem do braseiro seco e salgado da uma da tarde.
Dia após dia, passam por ela milhares de forasteiros que voam para o Sal em busca do oceano morno, do céu sempre azul e do sol que os afaga.
Poucos ficam a par da importância que aquela espécie de palacete avarandado e coroado por um telhado piramidal teve para a Santa Maria e para a ilha.
A Casa Viana e a História de Sal de Santa Maria
Em tempos, a Casa Viana acolheu os escritórios da Companhia de Fomento que controlavam a exportação de sal. O sal era acumulado num barracão instalado por detrás.
Dali, os trabalhadores carregavam-no em vagões e, sobre carris que atravessavam um túnel no âmago do edifício, prosseguia para as embarcações ancoradas no pontão.
Foi o sal abundante do Sal que deu origem à povoação que continuávamos a descobrir.
Se estivermos a encarar o mar, é para oriente do pontão que se estende a verdadeira Santa Maria. Lá se situam a sua igreja do Nazareno e o Mercado Municipal da cidade, por conveniência, instalado a umas meras centenas de metros das plantações agrícolas forçadas a um paul mais vasto, concorrentes das da zona fértil da ilha, da Terra Boa.
À esquerda de quem contempla o oceano, situa-se a grelha geométrica de ruas que, quando por perto de casa, os nativos percorrem, para cá e para lá, entre vizinhos.
E que os forasteiros calcorreiam de olho nas lojinhas de artesanato, entre as esplanadas e bares que dão mais sentido ao calor da ilha.
O meteorológico. E o da Morabeza.
Os nomes destas vias evocam o passado da ilha e de Cabo Verde, em várias das suas facetas. Há a Rua da Independência e, claro está, a Rua das Salinas, a inevitável homenagem às “minas de ouro branco” da ilha do Sal, na génese já secular de tudo o que vivíamos.
A Empreitada de Manuel António Martins e a Exportação de Sal a Partir de Santa Maria
Tudo começou com Manuel António Martins, bracarense, colono de Cabo Verde desde 1792, governador do arquipélago e da Guiné de 1833 a 1835 e o agente responsável pela extracção e venda do sal abundante da ilha do Sal.
Manuel António Martins também foi nomeado Conselheiro Real, vice-cônsul honorário dos Estados Unidos. Agraciado com o trunfo dessa relação diplomática, fez chegar da América um lote de casas pré-fabricadas.
Esses lares já prontos a morar permitiram-lhe pôr o seu plano em prática com grande celeridade. Começou por aliciar moradores da ilha vizinha da Boavista a mudarem-se para o Sal.
Na viragem para o século XIX, adquiriu escravos no litoral africano incumbidos do trabalho mais duro.
Ergueu marinas, bombas de vento e instalou o tal caminho-de-ferro que passava sob a Casa Viana e que assegurava a ligação ao ponto de embarque na zona da Ponta de Vera Cruz, junto ao pequeno farol agora incorporado no restaurante Farolim.
A partir de 1835, ano após ano, até 30.000 toneladas de sal foram enviadas de Santa Maria, quase na sua totalidade para o Brasil.
Em 1887, os governadores do Brasil decidiram proteger a sua própria produção e impuseram taxas pesadas sobre o sal que chegasse de fora. A ilha do Sal ressentiu-se de imediato.
Santa Maria, a sua grande povoação entrou num marasmo que se agravou até 1920, quando um investidor português retomou a produção e a venda da matéria-prima.
Esta retoma provou-se tão duradoura quanto proveitosa. Permitiu à povoação passar de pequena vila a cidade, o que aconteceu em 1935.
O Hotel Pioneiro e a Metamorfose de Santa Maria
A produção e exportação do sal prosseguiu até 1984. Nas décadas que decorreram, sem que nada o deixasse prever, a ilha viu aliviado o isolamento a que estava votada.
Em 1963, Gaspard Vynckier e a sua esposa Marguerite Massart, engenheiros e investidores belgas, sentiam-se saturados com o clima invernoso de Ghent, a cidade em que viviam.
Marguerite sofria de asma. Decidida a aliviar os sintomas sempre incómodos, precisava de se instalar num clima mais quente e seco. Através de amigos que o casal tinha em Portugal, descobriram o Sal.
Maravilhados com a ilha, lá construíram uma sua segunda casa. Pouco depois, decidiram abrir um resort pioneiro do Sal. De forma a promoverem, entre os visitantes, o espírito de amabilidade, afabilidade e acolhimento de Cabo Verde, chamaram-lhe “Morabeza”.
Revolucionário, o resort teve, a 13 de Maio de 1967, uma inauguração politizada. Contou com o governador de Cabo Verde e com o administrador da ilha, ladeados por um séquito de outras figuras proeminentes.
Os proprietários chegaram no dia seguinte, a tempo de um almoço oferecido pelo Governador Sacramento Monteiro ao casal belga, aos hóspedes do resort e a vários outros convidados.
Daí em diante, Gaspard e Marguerite passaram os invernos no Sal. Engenheiros como eram, envolveram-se na resolução da falta de água potável na ilha, como no seu saneamento, entre outras iniciativas.
Desde 1962 que o voo entre Joanesburgo e Frankfurt da South African Airways fazia escala no aeroporto de Espargos. Com os anos, várias outras companhias, entre as quais a TAP, a TAAG, a Cubana e a Aeroflot – as três últimas envolvidas na Guerra Civil de Angola – garantiram escalas na ilha.
O resort “Morabeza” expandiu-se de acordo com a procura. Em 1991, as tropas cubanas deixaram Angola. A Cubana, a Aeroflot e outras suspenderam as suas escalas no Sal.
Os Anos 90 e a Vaga Turística Que se Continua a Avolumar
Sempre precavido, desde 1986 que Gaspard Vynckier procurava aliciar os turistas europeus a fazerem férias na ilha do Sal. Os primeiros grupos de portugueses terão chegado via agência Abreu. As viagens dos primeiros alemães foram da responsabilidade de uma tal de agência Neckerman.
Com o propósito de solidificar o turismo do Sal, Vynckier fundou ainda agências em Paris e na Bélgica.
Os visitantes aumentaram de forma gradual. Chegados de Portugal e, não tarda, de um sortido de países europeus. A procura justificou a construção de novos hotéis e resorts.
Esta nova realidade leva-nos do Hotel Morabeza, uns meros metros areal afora, de volta ao pontão.
E, logo, à secção para ocidente da estrutura, aquela que acolheu os estabelecimentos concorrentes, uns atrás dos outros, da Ponta de Vera Cruz, ao limiar arredondado da Ponta do Sinó.
É de um desses resorts que saímos de carro, apostados em desvendarmos outros litorais que não apenas o do sul. Espreitamos primeiro a praia de Ponta Preta que nos dizem ser há já muito um dos Kite Spots do Sal.
A Moda do Kite Surf Trazida pelos Ventos Alísios
Com o tempo, mudam-se as modas. À parte do seu sol, também os ventos alísios fortes e estáveis da ilha conquistaram adeptos. Como resultado, o Sal recebe, todos os anos, milhares de fãs de windsurf e, cada vez mais, de kitesurf.
Por um qualquer capricho meteorológico, só uns poucos praticantes, em óbvia aprendizagem, frequentavam a Ponta Preta. Mandamos um mergulho, que o Atlântico estava ali demasiado aliciante para o conseguirmos evitar.
Ainda por enxugar, regressamos ao carro e atravessamos para a costa oposta (a leste) o mais directo que conseguimos, tendo em conta que da artéria principal da ilha para oriente, o caminho se transforma num caos de estradas de terra e de areia indefinidas e em que nos receávamos atolar.
Interrompemos aquela espécie de Paris-Dakar umas centenas de metros acima da escola de kitesurf 100 Feet. Caminhamos entre dunas amareladas. Por fim, entre duas delas, avistamos o verde-azul do Atlântico, ali bem mais agitado e ventoso que na Ponta Preta.
Ao perscrutarmos a praia, deslumbramo-nos com a magnificência atlântica do cenário.
Do promontório da Serra Negra e da Ponta da Fragata, para sul, uma profusão multicolor de velas de kitesurf trepidavam no céu esbranquiçado e cruzavam-se para cá e para lá, vezes sem conta. No areal, alguns candidatos a praticantes mais sérios do desporto, ensaiavam a sua entrada em cena.
Refastelamo-nos por momentos contra uma duna e ficamos a assistir àquele estranho bailado.
Conformamo-nos com o facto de ali se exibirem inúmeras manifestações do milagre de Santa Maria do Sal. E desistimos de contar os kites.