Percorremos mais uma ruela apertada de adobe quando nos confrontamos com uma procissão proveniente de um outro beco escuro.
Progride a passo curto, atrasado pelo peso dos andores que transportam Cristos e Virgens Marias de porte impressionante. Pelo menos, se tida em conta a dimensão do lugarejo.
O cortejo é animado por cânticos estridentes, interpretados por centenas de devotos iluminados por tochas.
Na frente, segue uma combinação improvável de beatas da povoação escondidas atrás de véus negros e estrangeiros curiosos que caminham de calções e sandálias.
Tendo em conta a vagareza, promete demorar toda a madrugada a percorrer San Pedro e a chegar à igreja homónima. Para os estrangeiros, isso pouco importa.
Mal a Calle Caracoles fica desimpedida, à falta de crença, entregam-se ao jantar.
Pouco depois, à cerveza Austral e ao Pisco Sour, as bebidas rainhas do Chile, perfeitas para alegrar a narrativa das suas estórias de viagem, as exactas e as exageradas, e a noite em geral.
Finda a cerimónia, a animação depressa contagia a calle Gustavo Le Paige. O baptismo desta ruela homenageou um missionário jesuíta de origem belga que se radicou em San Pedro, em 1955.
Como tantos outros forasteiros, Le Paige apaixonou-se pela vida simples da povoação e pelo seu passado atacamenho. Tornou-se, aliás, um dos responsáveis pela preservação da fé e da manifestação religiosa a que tínhamos acabado de assistir.
Dos Atacamas ao Caminho de Ferro que Transportava Nitrato
O oásis que o acolheu foi inicialmente ocupado, há cerca de 11.000 anos, pelos Atacamas, o primeiro povo a fixar-se nas zonas irrigadas por rios ou aquíferos da puna e das quebradas do deserto.
Conquistada a área aos Incas – que dela se haviam entretanto apoderado – os colonos espanhóis ergueram São Pedro de Atacama. Em 1540, Pedro de Valdivia, o conquistador proeminente destas partes da América do Sul visitou-a.
A povoação viveu uma paz próspera, enquanto paragem obrigatória das caravanas de gado e de nitrato que ligavam as oficinas nas terras altas da cordilheira dos Andes às planícies do deserto do Atacama e à costa do Pacífico.
Essa substância viria, mais tarde, a ser exportada para todo o mundo. Também para Portugal. O famoso fertilizante Nitrato do Chile depressa se provou essencial ao bom desempenho das culturas.
Enquanto se disseminou pelo subsolo português, a sua imagem de marca do cavaleiro negro invadiu a superfície em posters e sacas do produto. Resistem, aliás, um pouco por todo o país, vários painéis da marca, pintados em azulejo.
A introdução do caminho de ferro através dos Andes mais próximos causou o declínio de São Pedro de Atacama. A povoação só ganhou enquanto destino de férias predilecto dos chilenos.
No entretanto, começou a atrair visitantes estrangeiros, rendidos à sua arquitectura colonial deslumbrante e à atmosfera tranquila e acolhedora.
A Invasão dos Gringos
Como nos explica o guia de Santiago de Chile, Maurício Aguero: “… o deserto de Atacama tornou-se irresistível aos habitantes aventureiros da capital chilena e, por volta de 1970, apoderou-se da povoação uma horda internacional de viajantes que havia já desbravado várias paragens das proximidades: Salta e Jujuy, na Argentina, o Salar de Uyuni na Bolívia, Cusco no Peru e tantos outros – e procurava novos fascínios”.
Passados alguns anos, eram já vários os bares, restaurantes e pousadas abertos em casas e outros edifícios típicos.
O turismo chegou para ficar e dominar. Depois das caravanas de burros e cavalos, a povoação tornou-se uma paragem obrigatória nas rotas de mochileiros à descoberta da América do Sul andina.
Hoje, os forasteiros contam-se aos milhares. Esta invasão subsidia e perturba, desde há muito, a forma de vida secular dos atacamenhos.
Durante o dia, a situação ainda é comportável. A maior parte dos gringos ausenta-se de San Pedro que adopta o ritmo arrastado dos seus habitantes.
Mulheres falam à porta da farmácia local, miúdos brincam descalços sobre a lama em redor das acequias, idosos pedalam a caminho dos seus huertos, logo à saída da povoação.
Tudo se passa sem pressas ou confusões.
As Calles e Ruelas de San Pedro de Atacama
Sobre o pôr-do-sol, os estrangeiros regressam das expedições do dia. aglomeram-se a sul da Plaza de Armas, na Caracoles, a ruela fulcral da vida nocturna de San Pedro.
Ali, nalgumas parelas e perpendiculares, os bares, restaurantes e lojas de recuerdos fazem um pouco de tudo para atrair mais clientes.
Criam decorações garridas, instalam lareiras interiores e palcos em que acolhem músicos chilenos e, quando calha, de outras partes do Mundo.
Também aumentam o volume do som o máximo que podem e mantêm angariadores exuberantes a desviarem transeuntes esfomeados ou sedentos para os seus estabelecimentos.
O espectro dos turistas é agora bem mais amplo do que há algumas décadas. A evolução acentuada da economia chilena dotou a região de melhores acessos e condições.
De repente, San Pedro e o Deserto do Atacama deixaram de ser território exclusivo dos indígenas e dos mochileiros, estes, habituados a sofrer para descobrir.
Chegaram também os hotéis de luxo, como o Explora e o Larache e os seus clientes endinheirados. Aos viajantes sub-35 juntaram-se outros, com mais idade, dinheiro e caprichos de conforto e requinte a condizer.
San Pedro de Atacama. Toda uma Cidade Colonial de Adobe
Malgrado a invasão de forasteiros, em termos arquitectónicos, este pueblo situado a 2436 metros acima do nível do mar mantém o aspecto rústico original gerado pelos colonos hispânicos.
Térreas e dispostas num padrão geométrico, as suas casas preservam o adobe em que foram erguidas. Umas vezes surge a cru, noutras, caiado.
Por vezes, vêmo-lo caiado mas “enfeitado” por riscas castanhas produzidas pelo escorrer da água dos telhados de lama num qualquer dia tão especial em que choveu.
As molduras de portas e janelas são quase sempre garridas e contrastam com os tons terra que as envolvem. Os interiores vão de espartanos à decoração lounge em função da criatividade e das posses dos donos.
Já as ruas, de terra batida, surgem interligadas em redor da Plaza de Armas, a praça de que sobressaem os edifícios religiosos e políticos da cidade, solenemente representados pela igreja de San Pedro, a Casa Incaica (especialmente construída para a visita de Valdivia) e o Cabildo.
As Deslumbrantes Traseiras Comerciais e Rurais de San Pedro
Nas traseiras da cidade, sob permanente ameaça especulativa, resistem uma espécie de guetos rurais das comunidades indígenas – os ayulles -.
São hortas e pomares irrigados por canais em que, para surpresa de muitos visitantes, flui a água gerada pelo degelo longínquo dos Andes. Afinal, era suposto estarmos num deserto.
A população permanente de São Pedro de Atacama ronda os 5000 habitantes.
Quando percorremos as callecitas ao fim da tarde, parece-nos bem maior. Inúmeros exploradores atarefados cruzam-se e voltam a cruzar-se até terminarem de organizar os seus programas para os dias seguintes.
Do lado genuíno da povoação, retiradas nas ruelas mais afastadas do centro turístico, pequenas mercearias vendem de tudo um pouco, desde sacos de adubo e corta-unhas a guias de viagem usados.
Destas tiendas e bodegas pitorescas, sobressaem a farmácia e a padaria. Lá admiramos as mulheres atacama e aymara de tez escura e olhos rasgados a comentarem os boatos do dia.
Desviamo-nos ainda mais do centro. Acabamos a comprar empanadas na bodega y botilleria San Pedro.
Oriana Soza está muito grávida mas ainda resiste ao balcão. Recebe-nos com um misto de surpresa e simpatia. Atende-nos o pedido, passa-nos o embrulho quente e deseja-nos o típico sul-americano “Que les vaya bien“.
Estamos prestes a deixar a mercearia quando a nativa ganha coragem e acrescenta ”y, señores … hablen de la nuestra bodeguita a los otros gringos, por favor”.