O “Mar d’Canal” aproxima-se do ancoradouro.
As vagas amansam-se à medida que o ilhéu do Farol ganha volume.
Destaca-se das falésias entre o ocre e o castanho, imponentes, que ladeiam a baía do Porto Grande, quase no limiar noroeste de Cabo Verde.
De tal maneira que nos revela a escadaria branca que o trepa até ao topo. O casario acrobático do Mindelo desvenda-se espraiado pela base extensa do Monte Verde como que a querer também conquistar-lhe o cume.
À hora a que o barco aporta, o sol cai para trás do Monte Cara. Ilumina e amarela a cidade com uma morabeza astral que tem tanto de suave como de efémera.
Já em terra, com a noite a insinuar-se, damos connosco ansiosos por desvendar o que havia para lá dos enormes paredões ferrosos que pareciam conter a capital.
Decidimos descobri-lo antes de nos dedicarmos ao Mindelo.
O novo dia amanheceu solarengo e algo ventoso como é suposto na época mais fresca e enxuta de Cabo Verde.
Apanhamos o carro alugado na Avenida Marginal e, logo, a estrada Mindelo-Calhau, um longo calçadão irregular, feito de pedras basálticas, tão vulcânico como seu destino final.
Seguimos para montante da ribeira seca de Julião, através de uma savana com feno raso ressequido, salpicada de arbustos espinhosos.
Uma Deslumbrante Volta a São Vicente
Aos poucos, internamo-nos no coração da ilha e apontamos para a caprichosa costa leste.
O Calhau não tarda. Admirarmos o seu casario multicolor no sopé dos dois vulcões negros que reforçam a pequenez dos lares.
Os arredores descampados surgem-nos em estilo Western, como uns nenhures fantasmas varridos pela areia e pela poeira, repletos de edifícios térreos abandonados à cacimba e aos Alísios.
Uma destas estruturas tem a companhia de uma baliza tombada e todo um campo de futebol áspero por diante. Identifica-os um letreiro: F.C. Beira Mar do Calhau.
A sede é preta e amarela, as cores precisas do Sport Clube Beira-Mar de Aveiro. Ao longe, na direcção do restante barlavento cabo-verdiano e do continente africano, vislumbramos ainda a ilha de Santa Luzia, em óbvio fora-de-jogo.
Retomamos a estrada que ali ganha o nome de Baía das Gatas-Calhau.
O Calhau fica já para trás quando reparamos que um arbusto feito árvore abraça o rail de aço.
Invade a berma e balança-se ao vento sobre o asfalto, como que a reclamar a supremacia do aventuroso mundo vegetal.
Da Praia Grande à Baía das Gatas
Ainda sem avistarmos vivalma, entramos no domínio desafogado da Praia Grande.
Uma sucessão de mesetas altivas de lava há muito esfriada dão ali à costa.
Sucessivos areais prolongam-se do limite das marés do Atlântico, vertentes acima.
A estrada que ondula entre essas mesmas vertentes e o oceano cruza os areais e as dunas.
Conduz-nos a uma derradeira enseada fechada por novo casario linear.
Consultamos o mapa. Confirmamos tratar-se da Baía das Gatas de que já tanto ouvíramos falar. Foi o pretexto de que não precisávamos para a visitar e nos refrescarmos com Strelas geladas.
Longe da data do famoso festival local e sem a multidão mindelense e de outras partes de Cabo Verde, faltava vida àquelas paragens. A cor abundava. Sobretudo nos barcos sortidos dos pescadores.
Acabámos, assim, por nos sentarmos a almoçar numa esplanada arejada, seduzidos pela recepção genuína da dona: “Se querem comida de cá, vão ter que esperar uma meia-hora, no mínimo.
Aqui a gente faz tudo fresco e na hora.” avisa-nos, por certo já farta das pressas dos pequenos tours que por lá passavam. “Não, não há cachupa! Mas há galinha frita.”
Não temos porque reclamar.
Sentamo-nos entre franceses, holandeses e ingleses. Desde o desembarque no Mindelo que não víamos sinal de compatriotas.
Saboreamos as cervejas e a estranheza daquele recanto da ilha que a companhia tornava mais estrangeiro.
O Recanto Pitoresco e Balnear de Salamansa
Findo o pequeno banquete, avançamos para Salamansa, a aldeia piscatória que se seguia, instalada na baía anterior à da capital em função da água doce, rara na maior parte de São Vicente, como no restante arquipélago. Entramos na que aparentava ser a rua principal.
Um grupo de mulheres e crianças partilha a fonte da povoação, munidas de jerricans plásticos. Enquanto os contentores enchem, trocam piadas e brincadeiras espontâneas a que respondem com gargalhadas fáceis.
Do outro lado da estrada, uma outra, senhora de mais idade, acabava de estender o equipamento azul do clube de futebol local sob o olhar de um clã reduzido de homens, alguns jogadores, outros ex-jogadores e adeptos que, motivados pelo nosso interesse, se apressaram a louvar o valor da sua equipa.
Passamos pela praia em frente à povoação. Ali, os desportos-rei são outros. Vários adolescentes nativos e um jovem holandês que acabou por ficar, gerem um centro informal de desportos náuticos.
Em simultâneo, aperfeiçoam o seu surf e kitesurf.
Ao regressarem do mar, alguns deles voluntariam-se para uma curta produção fotográfica. Cristiano, Kenny Marlon e Vladimir exibem, em poses estilosas, as suas pranchas e físicos.
Confiante, Jaírson não precisa de adereços para chegar a um mesmo plano.
Ascensão ao Tecto de São Vicente
Estávamos em vias de fechar a volta à estrada em que conduzíamos desde manhã cedo. Ao mesmo tempo, tínhamo-nos aproximado do acesso ao zénite da ilha (750 m), o Monte Verde sobranceiro que admirámos à chegada de ferry de Santo Antão.
Ascendemos ao seu cume panorâmico. Devagar, devagarinho, a altitude prendou-nos com vistas majestosas da Praia Grande.
E, para diante, ao longe, de Santo Antão, da Baía do Porto Grande, do Mindelo que a preenchia e dos montes e vales estéreis mas deslumbrantes entre a meseta que nos sustentava e o Canal de São Vicente.
Os Alísios castigavam aquelas alturas e Cabo Verde em geral, da ilha Brava a Santo Antão. De tal maneira que, ao chegarmos à beira do precipício, mal nos conseguíamos equilibrar.
Apesar da distância, percebemos que o “Mar d’Canal” voltava a atracar no porto. O dia encerrou-se num ápice e as luzes tomaram conta do casario.