Pode soar estranho mas um dos eventos que os habitantes de Seward, Alasca mais gostam de contar e explicar aos forasteiros é a destruição quase absoluta da sua antiga cidade.
Às 5.36 da tarde da Sexta-Feira Santa de 1964, o Alasca foi assolado por um dos maiores tremores de terra até hoje registados.
O abalo atingiu os 9.2 na escala de Richter. Além da destruição directa causada pela liquefação do solo, deu origem a um tsunami com ondas de 8 metros que submergiram e devastaram a pequena povoação instalada sobre uma planície aluvial do rio Ressurection e forçaram a sua reconstrução no sopé algo mais abrigado do Monte Marathon.
Mount Marathon Race: a Prova Rainha e Tresloucada de Seward
Talvez devido ao medo sempre latente de a catástrofe se repetir e os obrigar a fugir montanha acima, os moradores da cidade – como os de outras partes do Alasca – valorizam o atletismo alternativo como poucos e deliram com a prova rainha tresloucada do grande estado.
Assim que chegamos à baixa de Seward, percebemos como os seus participantes são os grandes heróis do Independence Day local.
Não devem chegar a cinco as avenidas da povoação esguia. A meio da manhã, a 4ª concentra já uma multidão de espectadores curiosos que conquistaram os lugares ideais para apreciar a parada iminente. Estão quase todos munidos de binóculos e de máquinas fotográficas com grandes teleobjectivas que apontam para a encosta em frente.
Passamos os olhos pelas alturas longínquas e só vemos pequenas nuvens de pó separadas por alguns metros. Mas a Mount Marathon Race vem mais próximo do que pensamos. Sem aviso, os corredores da dianteira irrompem de uma rua perpendicular.

Corredora na fase terminal da Mount Marathon Race, uma competição duríssima realizada em Seward.
Vencem a recta final a cambalear. Depois cruzam a meta em jeito de mergulho e entregam-se ao reconforto horizontal do asfalto.
Durante algumas horas, centenas de perseguidores juntam-se-lhes em estados tão ou mais lastimáveis. De tal maneira que, os últimos participantes a terminar a prova, se veem integrados no entretanto recém-chegado cortejo do Fourth of July.
4 de Julho: o dia Americano, à Moda de Seward, Alasca
Humilde mas tão arrumado como Seward em geral, o desfile arrepia de orgulho os espectadores fervorosos.

Duas jovens participantes na parada do 4 de Julho.
Vemo-los, vestidos de stars and stripes e a agitarem bandeiras com o inevitável padrão. Saúdam os compatriotas que seguem a cavalo, a bordo de calhambeques, bólides guiados por milionários inchados, em carrinhas agrícolas e nos veículos dos bombeiros.

Bandeirolas dos Estados Unidos decoram um carro que desfila no 4 de Julho de Seward.
Apanham guloseimas atiradas com demasiada força por crianças traquinas e admiram as coreografias de um grupo de majorettes adolescentes.
A Homenagem do 4 de Julho aos Corredores da Mount Marathon Race
“Gostávamos de pedir o vosso aplauso para estes grandes americanos que se sacrificaram em nome dos E.U.A. e do desporto” ressoa o apresentador de serviço.
O último dos corredores tinha completado a Marathon Race havia pouco tempo e vários outros participantes atrasados recebiam ainda assistência no posto médico montado para o que desse e viesse.
Até então, os piores casos tratáveis resumiam-se a pés em sangue, princípios de desidratação e desmaios de pura exaustão.

Atleta remove o calçado de uns pés massacrados pela Mount Marathon Race de Seward, Alasca.
Mas em 2009, um incidente mais extremo nunca teve remédio e a vítima até foi um médico. Aos 49 anos, Joe Hengy chegou do Minnesota entusiasmado por realizar o velho sonho de participar na corrida.
Durante a prova, já próximo do sopé do monte, escorregou e rolou penhasco abaixo. Três dias depois, faleceu dos ferimentos que sofreu na cabeça.
Mais tarde, um dos seus filhos visitou os governantes da cidade e pediu-lhes que colocassem sinalização e barreiras no trilho para evitar que novas tragédias acontecessem aos corredores pouco familiarizados com a montanha.
Placas e tabuletas foram coisas que nunca faltaram na feira que serve a comemoração. Cada núcleo associativo de Seward aproveita a ocasião para promover os seus ideais ou produtos.

O carro alegórico do Teen & Youth Center de Seward.
Acabamos por nos juntar à Igreja Adventista do Sétimo Dia que nos seduziu com as únicas American Pies milagrosas do recinto, irresistíveis e vendidas a um só dólar.
William H. Seward: o Negociador e Herói Americano do Alasca
Só William H. Seward conseguiu melhor negócio. A cidade que adoptou o seu apelido e o Alasca em geral devem-lhe o patriotismo que celebram, todos os anos, no quarto dia do sétimo mês.
A Rússia dominou Alasca até 1867. Mas os conflitos internos e com as tribos indígenas, os gastos cada vez mais excessivos com o transporte das peles que comerciavam, a manutenção da colónia em geral e o envolvimento nas guerras napoleónicas arrasaram o seu tesouro nacional.
Desesperado com a situação, o Czar Alexander II decidiu vender o território aos Estados Unidos. Do lado dos americanos, Seward, Secretário de Estado de Lincoln foi o político indigitado para conduzir as negociações.
Acabou por o comprar por 7.2 milhões de dólares, um valor inferior a dois cêntimos por acre.

Momento do desfile do 4 de Julho de Seward, Alasca.
Na altura, o partido Republicano chamou à transacção “A Loucura de Seward”. Treze anos depois, prospectores norte-americanos descobriram ouro no Canal Gastineau. Esse filão e outros entretanto achados depressa renderam mais de 150 milhões de dólares.
Desde então, a sorte alasquense nunca mais abandonou os Estados Unidos e o lucro continua a aumentar. Para os russos, só sobrou o arrependimento.
A Fama Piscatória de Seward
O Alasca prova-se generoso até no que diz respeito à sua fauna marinha e nada recompensa mais um pescador inveterado que uma boa pescaria no Dia da Independência.
São já nove da noite quando caminhamos pelo passadiço sobre o mar da Ressurection Bay e damos com um exemplo perfeito.
Estamos num extremo territorial do capitalismo mas nem por isso o feriado é para todos. Três empregados da doca penduram na montra e balança do porto os espécimes apanhados por um grupo de compinchas do Lower 48.
Quando a composição fica pronta, um funcionário com visual ZZ Top convoca-os para a fotografia, junto dos peixes e sob uma placa que não deixa lugar a dúvidas: “Caught At Seward, Alasca”.

Trabalhadores da doca de Seward preparam peixe recém-pescado ao largo por um grupo de pescadores.
Seward, o Alasca tão à Parte dos EUA
Continuamos a explorar a baixa litoral, ainda bem iluminada por um sol que continua muito acima do horizonte.
Por essa altura, a comemoração mudou-se para bares com música ao vivo como o Seward Alehouse da entretanto desimpedida 4a Avenida.
Mas também para os jardins de inúmeras vivendas, inevitavelmente decoradas com bandeiras dos EUA.
Famílias e amigos divertem-se em churrascos generosos regados a Alaskan e a outras cervejas regionais. Num dos quintais porque passamos, os convivas discutem o estado da nação a alta voz.
Noutra casa, uma miúda que veste o seu melhor vestido de Domingo, prefere refugiar-se das conversas dos adultos e brinca com um Uncle Sam insuflável.

Menina brinca com um boneco de Founding Father insuflável, em Seward, Alasca.
Nem estes alasquenses em festa nem o dia dão sinais de cansaço. Ao invés, a população temporária de Seward é reforçada pela chegada de visitantes das povoações em redor que afluem para as varandas em redor da marina.
Os relógios avançam para a meia-noite mas a escuridão nunca se instala.
Em seu lugar, o céu e a água da baía partilham o azulão de um lusco-fusco que não se rende.

Fogo de artifício à meia-noite de 4 de Julho, em Seward, Alasca.
O tom faz um fundo perfeito para o fogo de artifício garrido que se segue e reanima os espectadores para a comemoração. O Verão do Alasca ainda vai a meio.
Este 4 de Julho boreal só acaba quando acabar.