Quando chegamos ao coração da baixa de Sitka, um sacerdote ortodoxo conversa com fiéis à entrada da catedral de Saint Michaels, o assento do Bispo de Kamchatka, das ilhas Kuril e do arquipélago aleuta.
A sua batina negra, as barbas grisalhas fazem total sentido na proximidade da igreja azul e branca coroada por várias cruzes de oito braços douradas.
A quem não se inteirou da história, podem fazer menos num dos territórios da nação que foi tanto tempo a arqui-rival da pátria dos czares.
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A frente da catedral de Saint Michaels, de madeira e com a sua cruz ortodoxa de oito braços
Outras referências à América Russa aparecem diante de nós quando menos esperamos. Na vizinha Marine Street, surge a sepultura da Princesa Maksoutoff – a esposa do último governador. A princesa jaz numa espécie de extensão VIP do vasto e arrepiante cemitério russo de que o musgo encharcado e restante vegetação se continuam a apoderar.
Logo ao lado, impõe-se uma réplica da paliçada que os ex-colonos ergueram para se proteger dos ataques frequentes dos indígenas.
Os Tlingit, a Alma Nativa de Sitka e os Ursos que a Habitam
À chegada dos russos, a etnia Tlingit era dona e senhora da região. Depressa espalhou terror entre os invasores. A ameaça dos Tlingit obrigou-os a estabelecer uma aliança oportunista com os rivais Aleutas. Só assim, coligados, os russos conseguiram derrotar os nativos na Batalha de Sitka e erguer o entreposto de Novoarkangelsk.
Jimmy Craig conhece a história ao pormenor. Orgulha-se da resistência feroz dos seus antepassados.
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Jimmy Craig, o guarda-florestal tlingit ao serviço do Sitka National Historical Park.
Encontramo-lo fardado de guarda-florestal à entrada do Sitka National Historical Park onde detecta o aroma de fumo de fogueira nas nossas roupas e não resiste a comentar: “Vocês cheiram ao nosso melhor perfume: colónia de lenha! São muitos pontos ganhos na consideração de qualquer Tlingit”.
Sejam bem-vindos. Divirtam-se no parque mas tenham atenção. Nos últimos dias foram avistados ursos. Falem alto um com o outro. Se derem de caras com algum, acima de tudo não virem as costas!”
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Aviso de avistamentos recentes de ursos à entrada do trilho principal do Sitka National Historical Park
Seguimos o conselho à letra. Embrenhamo-nos na floresta escura. Divertimo-nos a alimentar diálogos tão fúteis quanto barulhentos.
Paramos apenas para admirar cada um dos 18 totens tlingits misteriosos e coloridos e para ler os placares explicativos dispostos ao longo dos trilhos.
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Totem tlingit dissimulado no meio dos troncos largos da floresta de coníferas em redor de Sitka
Os ursos também criaram problemas aos pioneiros russos.
Alasca. A Vasta Colónia Russa que Acabou Vendida ao Desbarato
Os Russos aventuraram-se no Alasca quase cem anos antes dos britânicos. Motivava-os a abundância de peles, um bem, à época, muito valioso que ali conseguiam em maior quantidade que do outro lado do Estreito de Bering.
Depois de os seus súbditos terem quase extinguido os animais alvo das ilhas Aleutas e de Kodiak, o primeiro governador da colónia, Alexander Andreyevich Baranov deslocou a capital para sul.
Ergueu Sitka com a ambição desmedida de estabelecer um império das peles que se estenderia da Baía de Bristol até ao norte da Califórnia.
O projecto esbarrou no avanço dos britânicos. Não chegou sequer a meio caminho. Ainda assim, os russos dominaram o Alasca até 1867. Nesse mesmo ano, fecharam um dos piores negócios da sua história.
À época, várias contendas domésticas e os conflitos com as tribos nativas, as elevadas despesas com a manutenção da colónia a que se vieram juntar aquelas decorrentes das guerras napoleónicas, esgotaram as finanças de São Petersburgo.
Como último recurso, os russos procuraram vender o território aos Estados Unidos. Os americanos acabaram por concordar com o preço de 7.2 milhões de dólares, um valor inferior a dois cêntimos por acre a que o Partido Republicano chamou “A Loucura de Seward” (o Secretário de Estado de Lincoln que assinou o negócio) que se revelaria surpreendentemente lucrativo.
O Ouro do Alasca Que Atraiu Novos Colonos de Todas as Partes
Treze anos mais tarde, os prospectores Richard Harris e Joseph Juneau, este que veio a dar o nome à capital actual do Alasca, descobriram ouro no Canal Gastineau. O filão que encontraram, em conjunto com outros, depressa rendeu mais de 150 milhões de dólares.
Parte do património e do modo de vida dos vendedores também passou para as mãos dos compradores. Nenhuma outra povoação do sudeste do Alasca herdou tanto como Sitka. Hoje, Sitka conta com 9 mil habitantes. É a única povoação do sudeste do Alasca que desafia o oceano Pacífico.
Como era de esperar, em termos étnicos e culturais, Sitka tornou-se na verdadeira salada-russa. Uma manta de retalhos histórica que nos continuou a intrigar.
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Fotografia de fotografia histórica de um grupo de indígenas tlingit, a tribo feroz que fez a vida dificil aos colonos russos
Passamos parte da noite em redor de uma segunda fogueira, na casa de um casal de jovens quakers que se ofereceu para nos acolher. Não éramos os únicos.
Uma Noite à Fogueira, com Quakers, S’mores e Um Músico Alasquense
Caleb tinha acabado de chegar da longínqua Fairbanks (cidade do norte alasquense) e também era convidado. “Trouxeram vinho? Que maravilha!” exclama quando detecta a garrafa nos nossos sacos de compras para o jantar.
Já Seth e Jillian, os excêntricos anfitriões, não se mostram tão entusiasmados. “Bom, o álcool vai contra os nossos princípios mas não vos vamos impor nada. Bebam mas portem-se bem a seguir! Sabem o que são s’mores?” perguntam-nos ainda. Estamos com muita vontade de voltar a fazer uma noite de s’mores. Mas vamo-nos instalando em volta da fogueira. Já vêem o que é.”
Por via das dúvidas, antes, mostram-nos onde era suposto dormirmos. Nesse mesmo pequeno quarto, divertimo-nos a observar dezenas de trajes folclóricos pendurados que nos parecem adequados a um longo Carnaval.

Os vestidos confeccionados à mão por Jillian, uma moradora de Sitka quaker que desprezava a tecnologia.
Jillian repara no nosso fascínio: “Gostam? Sou eu que os costuro à mão. Nós, quakers não somos grandes fãs de tecnologia, como já devem ter reparado”.
O Fenómeno Então Emergente do grupo Portugal. The Man
Saímos para o quintal e para a noite fria daquele Alasca litoral. Caleb já se servira do vinho.
Enquanto se aquecia junto às chamas lembra-se de algo que o intrigava. “Vocês conhecem os Portugal. The Man ? São uma banda alternativa de Portland já bastante famosa cá pelo norte dos States. Eu até apostava que vão ficar famosos também na Europa. (n.d.A.: foi mais ou menos o que aconteceu e já vieram tocar a Portugal). Porque é que têm este nome? Pois, gostava muito de vos explicar mas a verdade é que não sei. “
Para compensar, fez-nos um verdadeiro interrogatório acerca de Portugal. Garantiu-nos que seria uma das suas viagens prioritárias no Velho Mundo.
Entretanto, Jillian distribuí-nos galhos apanhados ali em redor e abre as hostilidades s’morescas. Faz uma mini-sanduíche de malvaísco entre bolachas. Coloca-a na extremidade do seu galho e tosta-a sobre o fogo. Nós e Caleb, imitamo-la e a Seth. Tímido, este, ria-se de tudo um pouco enquanto se protegia do fumo denso que nos fazia engasgar.
As chamas e o fumo não tardam a apaziguar-se.
Jillian aproveita para nos confessar: “Ah, como isto nos está a saber bem.”. Ainda estamos bastante moídos da aventura da manhã. Fomos minerar ouro para o rio. Nunca pensámos que aquilo cansasse tanto. Ainda por cima não encontrámos nem sinal dele. Nem sequer pó.”
Congeminações Sobre o Passado e o Presente Russo de Sitka
Por essa altura, assalta-nos a mente um paralelismo que expomos à fogueira: “Já repararam que se tivessem sido os russos a achar o primeiro ouro cá por estes lados, podíamos aqui estar a falar russo e a beber vodka acompanhado com pepinos em pickle ?”
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Torre da catedral de Saint Michaels, um dos símbolos da herança russa mais importantes de Sitka e todo o Alasca.
Ao que Seth contrapõe. “É verdade, rapazes. Mas não tenho bem a certeza se isso não acontece ainda de vez em quando aqui pelas redondezas. Podia ser mais visível, mas esta cidade ainda guarda muito de russo.
Tiveram azar com o calendário dos cruzeiros mas, quase sempre que cá atraca algum, há um espectáculo de danças tradicionais russas.”
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Longo pôr-do-sol tardio ilumina a vasta floresta de coníferas num canal nas imediações de Sitka
O próximo cruzeiro só chegava passado demasiado tempo.
Dois dias depois, embarcámos no M/V Malaspina e continuámos a explorar o Alasca pela rota do seu longo Marine Highway.