O norte da Florida acolhe-nos com uma meteorologia que destoa da que atrai tantos reformados norte-americanos a lá terem casas e a lá passarem os Invernos.
Uma frente fria poderosa invade o sul sub-tropical dos Estados Unidos. Enregela-o com uma ventania frígida que agita o mar ao largo, o canal de Salt Run e os braços de mar e de rio partilhados entre o Atlântico e o rio Matanzas.
A nós, apanha-nos de surpresa e sem roupa a condizer. Reagimos com planos de nos mantermos hiperactivos. De caminharmos o mais possível, à descoberta da cidade e do entorno.
Depressa percebemos o seu caracter enigmático, uma mistura entre legado histórico grandioso, universo de encantar e fantasia de Natal perene.
Optamos por entrar em St. Augustine, a pé, a cruzarmos a sua majestosa ponte levadiça dos Leões.
Enquanto o fazemos, o vento castiga as águas azul-petróleo do Matanzas.
Gera uma turbulência à superfície que se assemelha a rápidos.
Acima, bandos de pelicanos-pardos veem-se atormentados pela força das rajadas que inviabiliza os mergulhos precisos que os mantêm alimentados.
Chegamos a meio da ponte. Um semáforo vermelho, reforçado por aviso sonoro impede-nos de continuar.
O meio da ponte eleva-se para dar passagem a duas embarcações de pesca com mastros altos. Um ciclista gadelhudo fica aprisionado na mesma espera.
Desmonta da bicicleta e admira a passagem dos arrastões.
Os barcos somem-se para os lados do rio Tolomato e da barra por que todo aquele sistema fluvial interior vaza para o oceano. A ponte volta a descer.
O seu ponto cimeiro concede-nos um vislumbre, em aproximação, da velha Saint Augustine.
Sobre o edifício mais alto da cidade, ex-edifício do Tesouro e ex-banco Wells Fargo, actual Treasury on the Plaza – catalogado pelos americanos como estilo Revivalista Mediterrânico – e que serve de biombo a boa parte do casario.
Ladeiam-no várias torres, algumas, com telhados cónicos.
Esse horizonte inusitado, volta a remeter a cidade para algures entre o real e a fábula.
Quanto mais a percorremos, mais a estranhamos.
Chegamos ao extremo ocidente, em que a ponte se ajusta ao nível do mar a que se espraia St. Augustine.
Ponce de León, Pedro Menéndez de Aviléz e os Conquistadores Espanhóis da Flórida
Nas imediações, todo um círculo tropicalizado por palmeiras frondosas e uma estátua dele projectada, homenageiam Juan Ponce de León, o conquistador hispânico.
Mesmo se o seu pioneirismo se mantém polémico de León é considerado o líder da primeira expedição à região da Florida.
Acercamo-nos da base do quase arranha-céus Treasury on the Plaza e de uma bandeira stars n’ stripes que a ventania preserva hirta.
A barreira imponente do edifício instiga-nos a flectir para norte, rumo ao Distrito Histórico da cidade.
St. Augustine foi fundada, em 1565, por Pedro Menéndez de Aviléz. mais tarde, apontado pelo rei Filipe II, Capitão da Frota das Índias.
Por essa altura, o litoral atlântico norte-americano era disputado entre espanhóis, franceses e, não tarda, britânicos e holandeses.
O território da Florida, em particular, foi motivo de frequentes batalhas com os franceses, à parte de rivais habituais, huguenotes e luteranos que os espanhóis consideravam heréticos desprezíveis.
Os ataques franceses a partir do vizinho forte Caroline (erguido às margens do rio St. Johns) e de corsários britânicos tornaram-se um risco que os sucessores de Menéndez de Aviléz se decidiram a evitar.
A Cobiça dos Rivais Coloniais e a Construção do Forte de San Marcos
De acordo, 107 anos após a sua fundação, Francisco de La Guerra, sucessor de Menéndez de Aviléz, decretou o reforço da sua defesa e a construção da fortaleza que estávamos prestes a encontrar.
Pouco mais de um metro acima do caudal do Matanzas, uma bateria de canhões de tamanhos crescentes antecede uma sebe de palmeiras-de-saia, sob uma das torretas do castelo de São Marcos.
O engenheiro militar Ignacio Daza fê-lo quadrangular, cada aresta dotada do seu bastião proeminente, envolto de um fosso que só uma ponte levadiça nos permite cruzar.
Subimos para o adarve do forte.
Do seu cimo, detectamos o anacronismo curioso de um dos U.S. Rangers responsáveis pelo Monumento National, à conversa com um figurante de comandante militar da era colonial.
Chegada a hora da encenação que se seguia, o ranger deixa a mesa que partilhavam. Some-se para os corredores do castelo.
Abrigado do frio com rigor histórico, o comandante inaugura um discurso explanativo que nos faz e a uns poucos outros espectadores, retroceder ao tempo da colonização das Américas.
Quando o actor dá por finda a representação, espreitamos os derradeiros cantos do castelo.
Após o que nos mudamos para a zona mais recente e contemporânea de St. Augustine.
Nos séculos seguintes à concretização do Castelo de São Marcos, os inimigos viram-se em apuros para o tomar.
Amiúde, frustrados, privilegiaram a destruição da cidade em seu torno.
Os Britânicos, em particular, que detinham boa parte dos actuais Estados Unidos a norte, incluindo a Geórgia, fizeram questão de a deixar em chamas.
Saint Augustine e o seu Inusitado Vaivém Colonial
De tal maneira que, em 1763, após dois séculos enquanto capital da Florida espanhola, os espanhóis acabaram por ceder e passaram-na para domínio britânico.
Contados outros vinte anos, fruto de um acordo militar, estes, devolveram-na à procedência.
Decorria o ano de 1819, quando os espanhóis cederam a Florida aos recém-emancipados E.U.A. Saint Augustine foi capital do estado da Florida apenas por três anos.
Em 1824, a capital passou para Tallahassee.
A cidade perdeu a sua proeminência política. Conquistou vários outros dos atributos que a mantém no estrelato.
Do Lado Errado da Guerra Civil Americana
Em 1840, St. Augustine acolhia cerca de 56.000 habitantes, metade dos quais, escravos de origem africana. Entrada em cena a Guerra Civil Americana, a Florida rejeitou a União.
Alinhada com a escravatura, juntou-se à Confederação. No término do conflito, a União apoderou-se da cidade.
Muitos dos seus proprietários de terras e de escravos debandaram. St. Augustine viu agravados uns já óbvios apuros sociais e económicos.
Até que entrou na providencial Era Flagler.
Entra em Saint Augustine e em Cena Henry Flagler
Começamos a inteirar-nos de quem era Henry Flagler à porta do colégio homónimo e magnânimo. Lá esbarramos com uma pequena manifestação em redor da estátua que o homenageia.
Um grupo de homens e mulheres do movimento neo-Confederado, evoca H.K. Edgerton, um afro-americano, dos principais defensores que os Confederados não eram, nem são racistas e de que, segundo as suas palavras “existia um sentimento de família que unia os brancos e os negros sob a escravatura…
“Um grande amor entre o africano que servia nas terras do Sul e o seu Mestre”.
Edgerton defende ainda que “a escravatura forneceu uma instituição de aprendizagem aos negros”.
A questão em questão deixa-nos atónitos.
Como se não bastasse, um dos manifestantes é afro-americano. Traja um uniforme confederado. Segura uma bandeira dos Confederados.
O Rejuvenescimento de Saint Augustine
Do cimo do seu pedestal, de mão enfiada no bolso das calças, um Flagler de bronze assiste a tudo, sobranceiro.
Flagler – a par com Rockefeler – foi um dos co-fundadores da Standard Oil Company, empreitada que o tornou multimilionário.
Ora, no Inverno de 1883, o magnata visitou St. Augustine, deixou-se encantar pela cidade.
Projectou dotá-la de tudo o que lhe faltava para funcionar como um abrigo de Inverno para os americanos abastados, ansiosos por escaparem ao frio.
Aos poucos, ligou-a ao norte e, mais tarde, a Palm Beach e a Miami, via linhas de caminho-de-ferro agrupadas na Florida East Coast Railway.
Logo, mandou erguer na cidade dois dos seus maiores hotéis, o Ponce de León e o Alcazar, em estilos Revivalismo Hispânico e Mourisco.
O seu investimento resultou em cheio. Os americanos a caminho das praias do sul da Florida começaram a fazer escala em St. Augustine. Muitos, habituaram-se a fazer férias na cidade.
Com o tempo, o elegante Hotel Ponce de León deixou de ter lugar no cada vez mais concorrencial e modernizado mercado dos hotéis.
Em 1968, as autoridades transformaram-no no colégio que exploramos numa visita guiada.
Duas das suas privilegiadas jovens alunas conduzem um grupo de curiosos pelos cantos e recantos místicos, por vezes, surreais do estabelecimento, salão atrás de salão, do da biblioteca ao comedor, num inusitado domínio de hokus pokus digno de Harry Potter e companhia.
Em redor, outros edifícios erguidos por Flagler, ou por ele adquiridos e reconvertidos – o Mónica, o Lightner Museum e, à parte, a Catedral Basílica.
Todos iluminados por uma miríade de luzinhas, reforçam o brilho turístico ofuscante de St. Augustine.
A sua grelha de ruas seculares está à pinha de bandeiras, estandartes e letreiros que, mais que confirmarem a sua antiguidade, impingem as recordações, bugigangas e petiscos que renovam a vigorosa economia local.
Habitam a suposta casa mais antiga da povoação, grandes bonecas de touca.
Um museu de piratas congrega a história da pirataria caribenha.
Promovem-se provas de rum, de cerveja artesanal e de chocolate.
O parque de jacarés surge paredes-meias com o Farol e o Museu Marítimo. A velha St. Augustine deslumbra quem quer que a descubra.
Desde que não se chegue em busca duma genuinidade imaculada.