O sol da meia-noite é um. O do meio da tarde é outro.
Os noruegueses e estrangeiros instalados do lado de lá do fundo do porto Vagen, nas esplanadas da marginal Skagenkaien, absorvem a diferença nas faces e nos braços. Convertem-na em vitamina D e na sempre preciosa serotonina, isto, enquanto a clemência meteorológica o permite.
São poucos os portos de que nos lembramos com uma relação tão íntima com as cidades a que pertencem. O de Vagen abraça Stavanger com tanta força que quase a estrafega. O V com que a aperta revela-se de tal maneira profundo que quase se une ao Breiavatnet, o lago urbano em forma de coração a uns poucos metros para sul.
Tal como os desvendamos, hoje, estes fundos do estuário aparentam ser mais recreativos que comerciais. As aparências iludem.
Um Legado da Lucrativa Indústria Conserveira
Durante os séculos XVIII e XIX, os edifícios seculares de madeira e tectos em A serviam de armazéns e outras estruturas de apoio à pesca e tráfico de mercancias e, a partir do meio do século XX, às para cima de cinquenta empresas conserveiras de peixe que disputaram a cidade, até que, em 2002, a última foi encerrada.
Mesmo sem a amplitude do Vagen de Bergen, a emergência de Stavanger enquanto cidade incontornável de negócios e de lazer, a determinada altura, habitada e frequentada por gente endinheirada, facilitou a conversão deste casario, numa sucessão colorida – bem mais garrida que a dos edifícios de Bergen – de restaurantes e bares.
Só o asfalto da Skagenkaien separava os edifícios elegantes do braço de mar e das lanchas e outras embarcações logo ali ancoradas. Alguns dos clientes, donos ou passageiros dos barcos, davam-se ao luxo de cruzarem a via, para cá e para lá, numa alternância conveniente e prazerosa entre o convívio com a família e amigos e um ou outro afazer a bordo.
Em certas efemérides náuticas, as docas e ancoradouros ficam sobrelotadas. Até à data, o evento mais exemplificativo provou-se as Tall Ships Races de 2018 mas, verdade seja dita, que não é preciso tanto.
Valbergtarnet e Gamle Stavanger: a Cidade de Outros Tempos
Para leste da Skagenkaien, Stavanger trepa às “terras altas”, da Valbergtarnet, uma torre de observação erguida entre 1850 e 1853 e habitada em permanência, por vigias incumbidos de alertar os habitantes em caso de fogo. Nos dias que correm, a torre aloja um museu.
Serve sobretudo de miradouro sobre o cenário urbano circundante. Uns meros metros para leste, entramos em Gamle Stavanger, o bairro mais antigo da cidade e, assim defendem as suas autoridades turísticas, o maior (173) conjunto de casas históricas de madeira da Europa.
A partir de 1800, com a emergência da indústria conserveira, centenas de pescadores e outros trabalhadores das redondezas afluíram a Stavanger. Alguns, chegaram literalmente com as casas às costas. Feitos quase só de madeira, os lares eram fáceis de desmontar e de transportar em várias viagens em barcos a remos.
Antes do despontar da exploração petrolífera, Stavanger era a Capital das Sardinhas Enlatadas, para sermos mais científicos das Espadilhas (Sprattus sprattus) enlatadas, uma espécie da família do arenque então considerada das mais saborosas e cuja pesca e enlatamento, em molho de pimenta ou jalapeño, de tomate e em azeite, chegou a garantir o sustento de cerca de metade da população da cidade.
A restauração de Gamle resultou fidedigna excepto no que diz respeito à cor. Na origem, estas casas eram quase todas pintadas de vermelho ou amarelo, não por uma determinação da moda da época ou afirmação social. A tinta branca era de longe a mais dispendiosa.
Mesmo empregadas, as famílias humildes não se podiam dar ao luxo de comprar a cor norueguesa da sumptuosidade.
A Salvação à Tangente de Gamle Stavanger
Na ressaca da 2ª Guerra Mundial, os lares de Gamle tinham-se degradado. Formavam uma zona desvalorizada e mal vista. Um plano demasiado radical estipulou que deveriam ser arrasadas, substituídas por estruturas modernas de betão.
Este plano só foi abortado devido à oposição determinada de Einar Hedén, arquitecto da cidade, que conseguiu convencer o Concelho de Stavanger a salvar e a valorizar o seu âmago histórico.
Nos últimos anos, Stavanger rendeu-se a outras latas. À medida que percorremos as suas ruas e ruelas, cruzamo-nos com murais pintados por grafiters com a mente repleta de imagens surreais e cheios de talento para as ilustrarem.
Numa delas, a Ovre Holmegate, os murais voltam a dar lugar à mera cor. Há algum tempo, esta rua algo afastada da marginal Skagenkaien e demasiado semelhante às restantes, recebia poucos visitantes para as ambições dos donos dos negócios.
Inconformados, estes concordaram em pintar cada um dos edifícios em cores vistosas distintas. A ideia tornou a rua numa das mais frequentadas, lugar dos cafés e bares (além de um antiquário) mais na moda de Stavanger.
Uma Incrível Jazida de Informação e História sobre o Ouro Negro
Percorremo-la a caminho do litoral oriental da cidade, à procura do museu dedicado à era bem mais recente e próspera de Stavanger, a do Petróleo e Gás Natural.
Nas imediações, distraímo-nos com as traquinices das crianças e adolescentes que partilham o Geoparken, um parque de diversões feito de um contentor também ele grafitado e de uma superfície irregular própria para acrobacias de bicicleta e de skate.
Logo em frente, um complexo futurista de edifícios inspirados em tanques de armazenamento e torres de extração petrolífera só podia ser o que procurávamos. Entramos. Cirandamos.
Na maior parte do tempo intrigados, entre a panóplia de ilustrações, de maquetas e modelos, uns, explicativos dos distintos tipos de crude, outros, da evolução das plataformas que o permitem extrair com destaque para o Mar do Norte ao largo.
A Riqueza Fóssil que o Mar do Norte Concede à Noruega
Foi neste mar gélido e bravio que, 1969, a companhia norte-americana Phillips Petroleum Company (mais tarde, parte da ConocoPhillips) descobriu o Ekofisk, o primeiro dos vários campos de petróleo e de gás que tornariam a Noruega num dos principais produtores e exportadores de ambas as matérias-primas.
E num dos países mais ricos do mundo, se tido em conta o critério do Produto Interno bruto per capita. Stavanger beneficiou desta descoberta como nenhuma outra cidade norueguesa.
Em 1972, o governo norueguês fez passar no parlamento Stortinget, uma lei que estabelecia a criação de uma empresa estatal que viabilizasse a participação directa da Noruega na exploração do petróleo do Mar do Norte. Assim foi fundada a StatOil, mais tarde renomeada Equinor.
Stavanger viu-se selecionada para acolher a sede da Equinor. Por simbiose, várias outras empresas, agências e instituições ligadas à prospeção petrolífera lá se instalaram. No centro de um ramo industrial multimilionário, a economia de Stavanger não tardou a assumir o dinamismo e poderio actual.
Como adiantámos na entrada deste artigo, à imagem do que se passou nos países petrolíferos do Médio Oriente durante décadas a fio, a cidade poderia ter-se conformado com a sorte grande que lhe saiu. Em vez, optou por explorar um outro filão norueguês, o turismo. Em Stavanger, não é só no Museu do Petróleo que ambos se intersectam.
Alexander L. Kielland: o famoso Escritor, Edil e Voraz de Stavanger
Noutro fim de tarde, deixamos o vértice de Vagen apontados ao jardim-parque Byparquen que envolve o lago de Breavatnet. Pelo caminho, gaivotas endiabradas partilham o tejadilho de duas roulottes de petiscos e sobrevoam-nas de olho em qualquer oferta ou distração dos clientes.
Identificamos a Catedral de Stavanger, solarenga, e, em frente já por completo à sombra, a estátua de Alexander L. Kielland, ex-edil de Stavanger, considerado um dos quatro grandes escritores noruegueses, realista inveterado.
De tal maneira fiel ao realismo que muitos leitores creem que deixou de escrever (cedo demais) por se ter desiludido com o rumo neo-romântico que a literatura norueguesa tomava no final do século XIX. Isto, anos antes de falecer de obesidade agravada por uma intratável paixão por comida.
Desde 1880 que Kielland sofria de respiração encurtada e de sérios problemas cardíacos. Por fim, em 1906, as várias maleitas de que padecia acabaram por o vitimar. Os dramas em redor de Alexander L. Kielland estavam longe de se ficar pela sua morte.
Como forma de reconhecimento pela obra que o escritor deixara à cidade, à Noruega e ao mundo, a Stavanger Drilling Company resolveu baptizar uma plataforma semi-submersível de perfuração em sua honra.
O Drama Horrífico da Plataforma Kielland
Pois, no início de noite chuvosa e nevoenta de 27 de Março de 1980, a plataforma viu-se batida por ventos na ordem dos 74km/h e ondas de até 12 metros. Por volta das 18h30, os trabalhadores a bordo sentiram um estalar, seguido de um tremor.
Instantes depois, a plataforma inclinou cerca de 30º. Dos seis cabos que a estabilizavam, já só um resistia. A inclinação aumentou. Apenas três minutos depois do abanão, o derradeiro cabo cedeu e a plataforma adornou. Cento e trinta trabalhadores estavam na messe e no cinema. Os restantes, nos seus aposentos e postos de trabalho.
Das 212 pessoas a bordo, 123 pereceram. Estes números fizeram do incidente o desastre mais mortífero nos mares da Noruega desde a 2ª Guerra Mundial.
Uma catástrofe petrolífera e humana que, atrevemo-nos a dizê-lo, a ter-se dado na era correspondente, poderia ter inspirado em Kielland – além de escritor, patrão abastado mas defensor da classe operária – toda uma complexa e profunda abordagem da sociedade norueguesa.
No dia seguinte, a viagem curta que fazemos do centro litoral de Stavanger até à beira-mar do bairro de Hafrsjord prenda-nos com alguns deliciosos apontamentos.
Sverd i Fjell: uma Homenagem à União Norueguesa
É feriado. A meteorologia tinha regressado à frigidez algo ventosa mais expectável naquelas paragens. Um frio insuficiente para demover alguns adolescentes de se banharem no mar quase raso de Mollebukta que os obrigava a andar mais de cem metros até à água lhes passar dos joelhos.
Um grupo de amigos resolve caminhar ainda mais e subir a uma plataforma lúdica que lhes permitia divertir-se a mergulhar. Duas irmãs tão alvas quanto possível resolveram estender o seu programa ao dálmata da família. Malgrado incontáveis puxões e repelões de trela, o cão viu-se mesmo forçado a um longo e tortuoso baptismo.
Em terra, sobre um relvado salpicado de árvores, várias famílias e amigos piquenicavam e confraternizavam. Quem, como nós, ali desembocava pela primeira vez, chegava com outros propósitos.
Hafrsfjord foi palco de uma batalha homónima que, no ano 872, permitiu ao rei vitorioso Haroldo I, unir toda a Noruega sob o seu poder.
A comemorar a batalha, em 1983, o escultor Fritz Roed cravou num promontório rochoso três espadas de bronze com dez metros. A mais elevada (porque colocada mais acima) representa Haroldo. As duas outras, abaixo, os reis derrotados.
O monumento preserva forte simbolismo para os noruegueses e a perspectiva por que todos anseiam de paz duradoura, de tal maneira que as espadas foram cravadas na rocha para que essa paz não fosse perturbada.
Sobre o pôr-do-sol, Sverd i Fjell, assim se chama a obra, exibe-se, fortemente fotogénica, dourada pelo ocaso, refletida e algo distorcida na água abaixo.
Num, por vezes desesperante modo de turnos, partilhamo-lo com namorados, grupos de amigos, com visitantes e deambulantes solitários.
Fotografamos os momentos e movimentos que, entre todos aqueles fortuitos modelos, mais nos cativavam. Quando o breu assenta e nos enregela de vez, refugiamo-nos no âmago pacificado, acolhedor e sofisticado de Stavanger.