Passadas Wasilla e Palmer, a civilização fica para trás.
Com ela, os últimos cruzamentos e desvios. A possibilidade de nos metermos por um caminho errado desaparece na quase deserta George Parks Highway.
São onze e quarenta e cinco da noite. A luz ainda se expande a partir do horizonte.Ilumina a noite branca. Malgrado o nome, a atmosfera envolvente é azulada, retocada pelos tons naturais da paisagem.
As montanhas insinuam-se, à distância, destacadas do céu limpo pelos seus cumes nevados. Como contraponto, a floresta de coníferas domina as terras baixas. Alonga-se mesmo até à berma da estrada. Impõe um breu húmido e misterioso que nos vemos obrigados a sondar com cuidados redobrados
Os alces são a principal causa de acidentes rodoviários no Alasca. É depois de o sol se pôr, que se sentem mais à vontade para cruzar as estradas ou sobre elas estacionar.
Castanhos, altos e esguios, confundem-se com os troncos das árvores. Amiúde, os condutores só os detectam já sobre o asfalto.
Era um azar que estávamos determinados a evitar.
De quando em quando, passamos braços amplos de rio, feitos de águas selvagens alimentadas pelo degelo contínuo dos glaciares circundantes.
Estamos em plena época do salmão. Os alasquenses dedicam-lhes parte considerável das suas energias. Durante o dia, as margens delimitadas para o efeito estão à pinha de pescadores entusiasmados com a oferta inesgotável de peixes e com a competição que se instala.
Chamam combat fishing a esta forma comunal de pescar mas a maior parte dos adeptos não leva o nome demasiado a sério e aposta na camaradagem.
À milha 98 da George Parks Highway tomamos um desvio.
A Via Secundária que nos Leva a Talkeetna
Apontamos a Talkeetna, uma das povoações mais emblemáticas do Alasca. Por volta do século XX, formou-se, ali, um novo pólo de mineração do ouro que havia entretanto sido descoberto em diferentes regiões do estado.
Com o fim da febre, a preservação do seu aspecto histórico, o facto de se situar às portas do Parque Nacional Denali – ainda por cima dotada de um aeroporto – tornaram-se atributos que atraíram as famílias da grande Anchorage.
E todos os aventureiros ansiosos por avistar e conquistar o grandioso Monte McInley, a montanha mais elevada da América do Norte. Essa missão é de tal forma desafiadora que o cemitério da povoação está repleto de lápides que homenageiam os homens que a tentaram cumprir.
Em 1991 apenas, contaram-se onze as vidas sacrificadas pela montanha.
Mas não foram só os alpinistas que promoveram a povoação ao seu quasi-estrelato alasquense.
E a Vida à Margem da Pequena Talkeetna
Outras sub-culturas enriquecem a comunidade alternativa que a povoa e frequenta: os aviadores intrépidos que transportam os alpinistas e turistas à montanha e mais tarde os sobrevoam.
Os bichos do mato sociais insatisfeitos com as ambições clonadas e materialistas da maior parte dos compatriotas e que chegam determinados em arrancar do 49º estado uma existência à sua maneira. Os grupos descomprometidos de neo-hippies, de ambientalistas jurados apoiantes ou não do Green Party que já fizeram do partido dos verdes o mais votado em Talkeetna.
Estas personagens e clãs sociais misturam-se de forma dinâmica, democrática e afável. Como resultado, Talkeetna irradia um bem-estar e acolhimento que fazem com que muitos visitantes adiem as suas partidas. Alguns deles para sempre.
É o tamanho diminuto da aldeola (chamemos-lhe assim) que começa por surpreender. À boa maneira do Alasca, o centro resume-se a uma única rua, a Main Street.
Lá se concentram os edifícios mais antigos, agora lojas, agências de tours, bares e restaurantes embelezados por pinturas, letreiros e outras decorações coloridas.
De Junho a Setembro, esta rua é percorrida para cima e para baixo vezes sem conta. Até que se esgota a novidade e os forasteiros se veem forçados a escolher um poiso para desfrutar o anoitecer.
Um dos lugares mais encantadores da vila, o Fairview Inn, deixa escapar acordes de música ao vivo para a rua e desafia os transeuntes mais curiosos.
Fairview Inn e o Espectáculo Inebriante dos Bathtub Gin
Fundado em 1923 como estalagem de pernoita para o longo trajecto entre Seward (junto à costa sul) e Fairbanks (centenas de quilómetros para norte, a meio caminho para Círculo Polar Ártico), este estabelecimento acompanhou o passado recente do Alasca. Com o tempo, transformou-se numa espécie de museu vivo.
Assim que entramos no bar do rés-do-chão, reparamos na construção clássica. O chão é de tábua corrida, gasta. O enorme balcão, quadrado para optimizar o contacto com os clientes, surge protegido por uma assustadora pele de grizzly pendurada no tecto e a que fazem companhia algumas outras bem como armações de alce e de caribu.
Em redor, o mobiliário é constituído de várias relíquias, incluindo uma velha jukebox e a única slot machine de Talkeetna. Espalhadas, um pouco por toda a parte, encontram-se ainda testemunhos da história da região, nos mais diversos formatos e avisos humorísticos que aproveitam para regulamentar o comportamento errático dos clientes.
Como na maior parte do estado, a cerveja é, aqui, uma espécie de instituição. Além da famosa Alascan – a marca emblemática, por excelência – inúmeros pequenos bares e cervejarias oferecem novos sabores com frequências diversas que chegam a ser semanais.
Quando os Bathtub Gin começam a actuar, as duas salas do piso térreo estão lotadas. A cerveja refresca quase toda a assistência.
Os músicos da banda – incluindo o vocalista tocador de banjo e a teclista, a sua mãe então octogenária – moram na cidade. Nessa noite, dão a ouvir temas do Louisiana e do Mississipi. Essa escolha leva à loucura um inesperado sector sulista do público.
A Alaskan Amber e a Febre Alasquense das Cervejas Artesanais
Animados pelo concerto, só deixamos o bar às tantas. Lá fora, como por todo o estado, a noite é branca. Descansamos por algumas horas. Tomamos o pequeno-almoço no primeiro bar a abrir.
Àquela hora, sobrava tempo ao empregado, pelo que se decidiu a meter conversa. A manhã ainda nem tinha começado e damos connosco a elogiar mais uma vez a Alaskan Amber que tanto nos havia encantado.
Mark aceita a admiração. Ressalva que estávamos por aqueles lados há poucos dias: “A Alaskan é uma boa cerveja mas aqui em Talkeetna temos as nossas próprias cervejeiras particulares.
Eu sou louco por improvisar novos sabores. Eu e vários outros cá da terra. Façam uma coisa. Mudem os vosso planos. Ficam lá em casa até Domingo. Assim já podem explorar melhor estas paragens e as nossas cervejas caseiras.”
Por muito que soe a lugar comum, por estas e por outras é que quem viveu o Grande Norte sabe que é melhor não dizer adeus.