A recepção aos passageiros dificulta a formulação de um imaginário histórico credível. Estamos ainda 100 metros e já se ouvem os acordes de tango tocados pelos músicos à entrada.
E, chegados ao parque de estacionamento vislumbramos a pequena orquestra trajada de negro e melancólica, disposta contra uma parede de madeira.
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Músicos tocam clássicos de tango e tarantella e dão as boas-vindas aos passageiros do Comboio do Fim do Mundo
Dois violinistas apuram as melodias e esforçam-se por seguir o ritmo marcado por um contrabaixista com ar de indígena sul-americano, como o fazem dois tocadores visivelmente infelizes de concertina.
Os Passageiros Dão Entrada na Estação do Fim do Mundo
Apesar de assim dadas, à fiel moda psico-depressiva argentina, as boas-vindas estimulam os visitantes de Ushuaia, que nem que seja por estarem na cidade mais a sul do Mundo, e se verem a uns meros 1000 km da Antárctida, já têm motivos para comemorar.
Como se não bastasse, aprestam-se a embarcar num dos mais emblemáticos comboios à face da Terra para atravessar um cenário meridional inolvidável.
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Composição do Comboio do Fim do Mundo vence mais uma curva e aproxima-se da estação terminal.
Stuart, o chefe de estação canadiano, emite avisos em espanhol e inglês pelos altifalantes estridentes da estação. Ao fim de alguns, a equipa de “hospedeiros” certifica-se de que ninguém falta e é dado o apito que sinaliza a partida.
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Stuart Anderson, o canadiano director do Tren del Fim del Mundo acena para um outro funcionário da estação
A Locomoção Histórica da Camila
Aos comandos de um maquinista veterano sazonalmente emigrado do País de Gales, Camila, a locomotiva vedeta da frota do Ferrocarril Austral Fuegino solta uma nuvem escura de fumo para o tecto do edifício e outra, branca, de vapor que envolve a sua base.
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Maquinista galês aos comandos de uma das locomotivas que servem o Tren del Fin del Mundo.
A esforço, a velha máquina conquista os metros inaugurais do percurso. Enquanto isso, nas carruagens VIP, são servidos os primeiros flutes de champanhe e realizados os brindes correspondentes. Como a orquestra, a euforia a bordo deslustra o passado.
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Passageiros aguardam nas carruagens durante uma das paragens panorâmicas do percurso Ushuaia – Estacão do Fim do Mundo
Os Tempos do Desterro Presidiário no Fim do Mundo
A curta viagem desde o presídio até aos bosques de faias antárcticas que tinham que cortar até era um dos raros momentos de relativa liberdade e de comunhão dos prisioneiros com a natureza em seu redor.
Mas o Verão e bom tempo agora aproveitados pelos visitantes duram pouco mais que três meses em Ushuaia e na Terra do Fogo.
Muitas das suas incursões à floresta tinham lugar sob condições desagradáveis, por vezes extremas, que maldiziam com todo o vocabulário insultante que conheciam, de igual forma aos machados e aos intermináveis troncos que lhes massacravam as mãos e as costas.
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Paisagem repleta de cepos deixados pelas incursões ferroviárias dos prisioneiros de Ushuaia em busca de lenha para o presídio
Em conjunto, aquele comboio e o seu trajecto de ida e volta, mais a cela e o degredo nos fundos da América do Sul constituíam o seu castigo. E de nada valia escapar, porque estão condenadas ao insucesso as evasões para lado nenhum.
A Origem Precária do Presídio do Fim do Mundo de Ushuaia
No fim do século XIX, a Argentina instalou em Ushuaia uma colónia penal e os primeiros clientes chegaram por volta de 1884. Era necessária lenha para os aquecer e madeira para erguer os edifícios que albergariam os que estavam a caminho.
As autoridades enveredaram, assim, por uma curiosa aventura ferroviária em que bois puxavam pequenos vagões sobre carris de madeira. Sete anos depois, a infra-estrutura continuava a parecer demasiado rudimentar ao governador e este ordenou a sua substituição por carris Decauville com uma bitola de 500 mm.
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Locomotiva solta vapor à saída de uma das estações em que se detém o Tren del Fin del Mundo.
Em breve, uma locomotiva não animal viria a rebocar carruagens e centenas de convictos ao longo da costa, em frente das casas da Ushuaia que então se desenvolvia.
Em pouco tempo, os moradores passaram a tratar a estranha composição como El Tren de Los Presos. Na altura, embora poucos soubessem, o papel daqueles passageiros era duplo. À imagem das suas ofensas.
Desterros com o Fim de uma Colonização à Força
A Terra do Fogo mantinha-se inexplorada, à mercê das pretensões territoriais das novas nações rivais argentina e chilena. Consciente da urgência, o Presidente Júlio Argentino Roca decidiu matar dois coelhos com uma cajadada. Inspirou-se no exemplo de Port Arthur, na Tasmânia e desterrou, para ali, prisioneiros políticos ou de delito grave reincidentes.
Ao mesmo tempo que se viu livre do incómodo, manteve aquelas longínquas paragens habitadas, consolidando a legitimidade da posse argentina.
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Composição do Tren del Fin del Mundo surge do meio da floresta austral de faias.
Os carris foram-se alongando em busca de nova floresta para cortar. Nesse tempo, mais e mais criminosos tiveram em Ushuaia a sua última paragem. Muitos ali morreram, outros, raros, cumpriram as penas e regressaram às procedências. Dois, mais únicos ainda, escaparam por algumas semanas até serem recapturados.
Em 1947, a prisão foi desactivada e substituída por uma base naval. Dois anos depois, o forte sismo da Terra do Fogo destruiu grande parte do caminho de ferro.
Da Realidade Cruel aos Figurantes que Entretêm os Turistas
Pipo usa o nome do rio que, a espaços, corre ao longo dos carris. Foi contratado para recuperar a personagem do prisioneiro e representa o seu papel num uniforme prisional listado em azul e amarelo. Mantém uma postura cabisbaixa de ligeira humilhação que não detém os turistas ansiosos de fazerem o seu trabalho.
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Pipo, um figurante que traz à memória os prisioneiros que foram os passageiros originais.
No trajecto, foram fotografando a paisagem fuegina incluindo o Valle del Pico e a cascata de Macarena. Depois, registaram com entusiasmo redobrado o cenário preservado dos milhares de cepos cortados pelos condenados.
Faltam só os presos e, na sua ausência, Pipo tem que servir.
À saída da estação terminal de El Parque, enquadram-no, assim, dezenas de pequenas câmaras reluzentes. E o figurante conforma-se com a sua punição que, desde o famoso “cacerolazo” de 2001, que os pesos argentinos custam ainda mais a ganhar. “Sabem uma coisa amigos, há dias em que me sinto como os verdadeiros prisioneiros. Não tenho fuga possível.” Lamenta-se-nos, em tom humorístico, após dez minutos de conversa.
Do Caminho de Ferro à Vastidão da Terra do Fogo
Nada tem a ver com estacionamento automóvel, o pouso final do caminho de ferro. Para deslumbramento e conveniência dos passageiros, fica a pouca distância a entrada do Parque Nacional Tierra del Fuego e o último estertor da Cordilheira dos Andes, com as suas montanhas longínquas sempre nevadas.
Atravessam-no exploradores exigentes que, entre o relevo, descobrem lagos profundos, margens alagadas reclamadas por comunidades de castores e litorais recortados e dramáticos como o da Baía Lapataia. Para diante, o longo Canal Beagle.
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Pântano nas imediações da baia Lapataia
Muitos, coordenam a volta destas deambulações austrais com os horários do comboio. Regressam a Ushuaia dias depois, cansados mas recompensados, a bordo do Tren del Fin del Mundo.
Ainda dispostos a se aventurarem ao extremo oposto da região para visitarem a estância de Harberton, a fazenda pioneira e solitária da Terra do Fogo.