Apenas a solitária estrada EN-10 se aventura pelo extremo sul selvagem da Venezuela. A partir dela, desvendamos cenários de outro mundo, como o da savana repleta de dinossauros da saga de Spielberg.
Não serão propriamente frequentes os casos de quem visite a Venezuela com entrada pelo seu remoto sul. É verdade que celebrámos a conveniência de voar da cidade brasileira de Belém para Manaus, completar o percurso dali para Boavista e, logo, até à fronteira em vez de pagar um balúrdio por um voo internacional com várias paragens que nos obrigaria a ir até uma das principais cidades brasileiras e, desta para Caracas, ainda bem longe das paragens venezuelanas raianas que tínhamos em mente.
Só uma incidência pseudo-climatológica da viagem, em particular, desfez da satisfação gerada pela existência de uma alternativa, reforçada pelo facto de nem termos sequer que pernoitar em Manaus. Nas últimas seis horas do primeiro trecho de autocarro – foram 15 de viagem, mais de 24 se contarmos com as esperas em estações de camionagem – o motorista desligou as luzes e prendou os passageiros com ar condicionado enregelante. Mesmo precavidos com camisolas de manga comprida, só uma manta dourada de amianto estaladiço que transportávamos para precaver eventuais hipotermias evitou que adoecêssemos à séria naquele ónibus de Tártaro.
Chegámos ao limite norte do Brasil, já após as 18 h. A Polícia Federal encerrara às seis da tarde e não às dez da noite, como nos haviam informado. Mesmo sem o carimbo no passaporte, prosseguimos, ilegais, até Santa Elena de Uairén, uma cidade gerada pela descoberta de diamantes a uns 100 km, em 1924, que se desenvolveu bem mais quando a única estrada das redondezas, a EN-10 proveniente de El Dorado, por ela passou. Hoje, com quase 20.000 habitantes e muitos trabalhadores e visitantes brasileiros, Santa Elena foi a povoação que escolhemos como base para a descoberta da Gran Sabana venezuelana.
O dia seguinte serviu quase só para dormir e recuperarmos da tortura fluvial, aérea e terrestre a que nos tínhamos submetido desde a longínqua ilha brasileira de Marajó, no delta do rio Amazonas e para regressarmos à fronteira onde obtivemos os carimbos em falta. Ao segundo dia de estada num hotel de nome Augusta, conseguimos, por fim, preparar a expedição ao monte Roraima que nos tinha atraído àquelas paragens. Regressámos ao hotel seis dias depois, deslumbrados mas com todos os músculos e tendões destruídos pela difícil jornada de ida e volta ao cimo do “Mundo Perdido” de Sir Arthur Conan Doyle.
Mesmo em todo esse tempo de longa caminhada, explorámos apenas uma ínfima parte da vasta Gran Sabana que se prolonga por mais de 10.000 km2 e invade os territórios da Guiana e do Brasil. A extensão deste domínio geológico pejado de grandes mesetas rochosas legadas pela erosão pré-histórica de uma plataforma rochosa infinitamente maior e o facto de termos o tempo contado, aconselhava a que contemplássemos uma continuação rodoviária da descoberta. Não tardámos a render-nos à evidência.
O sol mal tinha nascido. Como combinado, Santiago já esperava à porta do hotel ao volante de um velho Cadillac branco. Saudamo-lo, metemos as mochilas no que sobrava da grande bagageira e partimos a caminho da ruta EN-10 e da Gran Sabana. Pouco depois, o começo madrugador começou a parecer-nos providencial. “Meus amigos, antes de tudo temos que ir meter gasolina”. Comunica-nos Santiago sem qualquer pudor. Rumamos a uma estação de serviço nos arredores da cidade. Mal lá chegamos, entramos em pânico. Eram as horas que eram mas a fila principal para abastecer tinha mais de um quilómetro de comprimento e, junto às bombas, ramificava-se em várias outras, por comparação, diminutas. “Não se inquietem!”, sossega-nos o condutor. “Com a carta de guia e turistas a bordo, não tenho que me sujeitar à espera. Quem provoca isto tudo são os brasileiros que vêm cá aproveitar! As autoridades já deviam ter feito alguma coisa para o evitar mas há demasiados interesses por detrás.”
Não tardámos a compreender o fenómeno. Graças ao benefício da enorme produção de petróleo venezuelana e à subvenção do governo, o combustível custava, na Venezuela, quatro cêntimos de Euro por litro ou, como resumiam alguns condutores orgulhosos do prodígio mas revoltados com o abuso dos vizinhos, menos que água ou o ar. “Pagamos muito mais por uma garrafa de água e até para meter pressão nos pneus! Mas, no Brasil, custa quase um dólar e meio por litro (praticamente os mesmos euros) e os candongueiros usufruem mais do que nós, tanto os brasileiros como os venezuelanos. Entram aqui com tanques duplos e jerricãs escondidos, subornam os militares e ganham enormidades com o contrabando. Só para terem ideia do quanto, em Santa Elena, à conta disto, estamos a ficar sem professores e sem gente de várias outras profissões.”
Salvo se o fizesse em part-time, Santiago não sacrificara ainda a sua. Comprometido com acordo, o chofer e guia regressa ao aconchego de cabedal velho da viatura e conduz-nos em direcção a norte, para longe de Santa Elena e de toda e qualquer urbanização.
Viajamos ao longo de uma savana sem fim e entre tepuys (as tais mesetas) de dimensões e formatos distintos, ali, com destaque para os irmãos Kukenam e Roraima de que tínhamos regressado havia tão pouco tempo. Acompanha-nos o rio Yuruani, caprichoso nos seus meandros apertados mas também no trajecto mais amplo. Cruzamo-lo uma primeira vez. Pouco depois, desviamos do asfalto e damos um pulo à Quebrada de Jaspe, uma pequena cascata que flui sobre a rocha que lhe dá o nome, polida e de um vermelho bem vivo que contrasta com o verde das algas que, aqui e ali, a ele se agarram.
Chove a potes quando chegamos a nova intersecção do Yuruani com a EN-10. As nuvens baixas e a névoa tornam difusa a forma dos tepuis mas não nos perturbam a visão intermédia do Salto Yuruani que faz despenhar as águas cor de caramelo de uma plataforma com seis metros de altura e sessenta de largura.
Mais alguns quilómetros e voltamos a deter-nos. Desta feita, perante o único cenário da Gran Sabana quase tão impressionante como os tepuys.
A estrada, ali elevada, revela um miradouro à sua esquerda. Desse ponto para Oeste, desvenda-se uma planície verdejante salpicada de palmeiras buritis que seguem o curso de correntes subterrâneas. Na grandiosidade do enquadramento, mais parecem bonsais. Só os indígenas Pemón podem habitar estas terras. De tempos a tempos, queimam áreas da planície para que a chuva faça desabrochar novos rebentos que, por sua vez, atraem tapires, tatus e veados, a sua caça.
Foi aquele o cenário que inspirou Steven Spielberg a criar várias das cenas do “Parque Jurássico” original, em que contracenam Sam Neil, Laura Dern, Jeff Goldblum e o falecido irmão do mentor da “Vida na Terra”, Richard Attenborough.
Esse mesmo cenário que continuamos a explorar permanece e permanecerá por muito mais milénios entre ilhas no tempo que abrigam, nos seus cumes, fauna e flora desse período geológico entre o Triásico e o Cretácico. A Santiago já não lhe causam grande entusiasmo.
A determinada altura do percurso, sentimos o carro desviar-se da longa linha recta que percorria. Não reagimos de imediato mas a descida de duas das rodas para a berma e a visão do condutor de cabeça baixa obrigam-nos a gritar-lhe e a tomarmos conta do volante.
Santiago desperta e desculpa-se sem grande jeito: “estava à procura de uma coisa que deixei cair ao chão”. Era mentira e a terceira vez que nos salvávamos de motoristas dorminhocos na Venezuela, terra de muita farra e vida nocturna.
Chegamos vivos às imediações do Salto Kamá, uma outra queda d’ água imponente com 50 metros de altura e que forma uma lagoa avermelhada sobre lajes do sempre abundante jaspe.
Algumas cabanas pemones ladeiam o cimo limiar do rio e os indígenas usam-nas como base para venderem artesanato. Antes de descermos, ainda experimentamos a incrível precisão de uma das zarabatanas com que habitualmente disparam setas envenenadas. Pouco depois, aproveitamos os últimos raios de sol a incidirem sobre a lagoa, refrescamo-nos e ficamos a descontrair dentro da água tépida na companhia de uma família venezuelana linguaruda.
Santiago desesperou por alguns momentos mais antes de inaugurarmos o retorno a Santa Elena. No regresso, tivemos que o acordar por mais duas vezes. Nem assim o velhote admitiu que seria melhor ceder o volante.