Não fosse a passagem programada pelo extremo norte de Queensland e uma das nossas longas viagens pelo outro lado do mundo teria fluído com um calendário mais descontraído.
Desfrutámos dos meses “dourados” do Outono japonês e o Inverno havia-se entretanto instalado com uma suavidade inesperada. Não existiam, à primeira vista, razões lógicas para apressar a partida daquele Extremo Oriente exótico que esfriava aos poucos.
Alguns milhares de quilómetros para sul, no entanto, crescia lentamente uma indesejada La Niña e o fenómeno era o oposto. O Pacífico do Sul aquecia a olhos vistos.
No prolongamento da costa nordeste da Austrália, o Mar de Coral atingia temperaturas pouco saudáveis para a Grande Barreira de Recife.
Sabíamos que o desenvolvimento daquele padrão não augurava nada de bom para o litoral oriental da grande ilha. De acordo, apressámos a mudança para o Hemisfério Sul e a descoberta da Austrália Tropical.
Do Inverno do Hemisfério Norte ao Verão Tórrido da Austrália
Aterramos em Cairns no fim de uma época seca e alta que se estendia muito para lá do normal. O céu estava limpo e manteve-se azul na maior parte dos dias. Em paralelo, a humidade aumentava a olhos vistos e exigia inspirações cada vez mais profundas.
Pouco depois, vêmo-nos vítimas do típico laxismo português de achar que tudo se resolve à última, e em sérios trabalhos para alugarmos uma campervan. “Só se vos conseguir uma ute (australiano para pick-up) com cobertura de lona e a arranjarem à vossa maneira … querem que tente? “pergunta a miúda loura ao balcão do turismo da cidade e deixa-nos num desespero indisfarçável.
Por sorte, um seu derradeiro telefonema tem resposta positiva. Safamo-nos com a velha van de serviço de uma tal de Cairns Older Car, uma empresa de aluguer de muito-usados.
É já ao volante da velha carrinha que visitamos os armazéns do Salvation Army local, onde tentamos solucionar a nudez pouco acolhedora do veículo, a comprarmos cortinas e colchões em segunda mão. Terminada a “decoração”, partimos para o noroeste luxuriante da Austrália.
Barron Falls a Kuranda. A Viagem Acima da Selva da Queensland Tropical
Interrompemos a viagem pela primeira vez no Parque Nacional Barron Falls.
Lá apanhamos um teleférico que deixa o litoral, sobe a encosta verdejante da Grande Cordilheira Divisória e detêm-se na Red Peak Station onde um ranger aborígene Tjapukai nos encaminhou e a outros visitantes a um passeio pela floresta.
A humidade revelava-se ali mais opressiva que nunca. Fazia o anfitrião nativo falar devagar. O guia explica-nos, com exemplos fáceis, as crenças sagradas do seu povo Tjapukai. Como todas as coisas: o Sol, a Lua, as estrelas, a Terra e as suas criaturas etc. – tiveram origem no tempo da estória – o Buluru.
Prosseguimos a bordo do Skyrail, rumo à próxima estação. Pelo caminho, sobrevoamos a selva imensa que cobre a região. Até Kuranda, pouco mais avistamos que as incontáveis copas das árvores multi-milenares e um ou outro fio de água.
No regresso, o panorama repete-se. Até nova aproximação ao Mar de Coral, quando o verde predominante da selva dá lugar a uma gradiente de azul.
Tem 135 milhões de anos a floresta que acabamos de sobrevoar. É a mais antiga do mundo, considerada um palco privilegiado das etapas evolucionárias da Terra.
No norte de Queensland, este processo natural intensificou-se como em poucas outras partes do planeta. Deu origem a uma biodiversidade tão vasta que mereceu o reconhecimento da UNESCO. A organização declarou o Parque Nacional Daintree (alguns quilómetros para norte) Património Natural da Humanidade.
Em breve, perceberíamos melhor o porquê do título.
De Volta à Estrada, Cook Highway Acima
De volta à campervan improvisada, percorremos a Captain Cook Highway mais para norte. Internamo-nos numa Austrália perdida entre as selvas densas a oeste e as praias bravias que acolhem o Mar de Coral.
Mantemo-nos atentos à estrada, prontos evitarmos as travessias saltitantes dos wallabies e restantes cangurus, causadoras de acidentes frequentes um pouco por toda a Austrália.
Desgastados pelo calor, cedemos ao apelo dos areais brancos e das águas tranquilas de uma praia chamada Four Miles. À entrada, uma enorme placa amarela alerta, em várias línguas, para perigos diversos: correntes, crocodilos e a presença de águas-vivas (stingers).
“Chegaram há pouco a estas partes, certo?“ pergunta-nos o nadador-salvador ozzy, debaixo do seu chapéu akubra e nitidamente à procura de diversão. “Pois, bem me parecia … lamento informar-vos que só podem entrar no mar dentro daquela área”.
Olhamos com atenção. Constatamos tratar-se de meros quinze metros quadrados dos quase 900 metros de extensão da praia. Quando já nos parece difícil que a coisa piorasse, percebemos que, dentro do limite das bóias, a água não nos chegava sequer aos joelhos.
O quadrado flutuante sustinhas redes. As redes que evitavam a entrada de diversas espécies de alforrecas e medusas temidas por injectarem químicos letais ao picarem as vítimas (daí o nome inglês stingers).
Estas criaturas nascem nas fozes dos rios que descem da Grande Cordilheira Divisória e colonizam as águas costeiras do Mar de Coral. Fazem-no durante os cinco meses quentes da estação das chuvas, quando a temperatura do Mar de Coral pode passar os 30º.
A Austrália Ainda Mais Selvagem do Parque Nacional Daintree
Ao contrário da desilusão, o banho é curto. Em seguida, retomamos o caminho em direcção ao Parque Nacional Daintree, com sucessivas paragens estratégicas noutros litorais atractivos.
Ao percorrermos o areal da Cow Bay, conhecemos James Pratt, morador de uma casa de praia próxima. Basta mencionarmos a frustração de não nos podermos refrescar em águas tão convidativas, para que inaugure um novo drama australiano.
“Pois é. Queensland é realmente perigosa. Na verdade, os meus caniches estão, neste preciso momento, a correr perigo. Não os devia deixar correr tão perto da água. Nunca se sabe quando um croc anda por perto… “Quando não são os crocs são as stingers. Vá lá que essas só chateiam uns meses…”.
Há pouco que acrescentar quanto à primeira ameaça. À imagem do restante Top End australiano, o extremo norte de Queensland é, desde os confins do tempo, um habitat privilegiado do maior réptil do mundo, o crocodilo estuarino. Patrulham os rios, os mangais, os lagos e, porque estão aptos a nadar em água salgada, também as praias.
Ao contrário dos vizinhos de água doce – que são menores e só atacam humanos em casos extremos de auto-defesa – os crocodilos estuarinos são agressivos.
Podem passar os seis metros de comprimento e provocam, todos os anos, vítimas mortais em acidentes que os jornais australianos sensacionalistas aproveitam para fazer as suas primeiras páginas.
Os crocodilos não são os únicos a merecê-lo. Apesar da dimensão diminuta das criaturas, as águas vivas não ficam atrás.
Como Esperado, os Ciclones e Inundações da Queensland Tropical
Durante duas semanas recheadas de experiências e sensações intensas, continuamos a explorar a região. Entretanto, voamos de Cairns para Alice Springs, no centro do continente australiano. É lá que celebramos a entrada no novo ano.
Alguns dias depois, cumpria-se o previsto.
Em todos os canais de TV e estações de rádio da Austrália, um pouco por todo o mundo noticiava-se que o norte de Queensland estava debaixo de água.
Aguardavam-se mais tempestades tropicais e ciclones, mais que esperados durante os meses da época das chuvas de Queensland.
Duzentas mil pessoas tiveram que deixar as suas casas. Trinta perderam a vida. Nove foram dadas como desaparecidas.
O prejuízo final cifrou-se em mais de mil milhões de dólares australianos (à data, cerca de 800 milhões de euros).
Como sempre acontece nestes tempos de calamidade, voltaram a surgir casos hiper-explorados de humanos atacados por crocodilos à solta na recém-formada vastidão aquática.