À medida que o avião baixa tornam-se mais nítidos os recortes irregulares da Terra do Fogo e as suas cores dominantes: o azul-escuro do mar gélido, os verdes, amarelos e vermelhos da vegetação e o branco e negro das montanhas finais dos Andes e o casario de Ushuaia.
A aterragem requer uma inversão de sentido. Sobrevoamos, em círculo, o Canal Beagle e confrontamo-nos com o casario brilhante de Ushuaia, espraiado ao longo do sopé da Cordilheira Darwin, aqui com cerca de 1500 metros de altitude. Quando o deixamos de ver, o avião pousa, como mandam as regras, contra o vento e suavemente.
A Recepção Calorosa de Ushuaia
Por pura diversão, rogamos pragas à panóplia de roupa invernal que nos atafulha as mochilas. Sabemos que aos 54,48 graus sul, momentos quase estivais como o que encontramos são tão raros como coqueiros e que de um momento para o outro, as massas de ar frio provenientes do continente gelado reconquistam o seu território.
Não foram os dias solarengos destes confins que ficaram para a história. Nem são o deleite e o conforto as sensações que mais se retiram das peripécias dos aventureiros que o desbravaram.
Mesmo assim, muito mudou desde então. Como no tempo de Magalhães e Fitz Roy, Ushuaia e Buenos Aires continuam a 3500 km de distância mas a Terra do Fogo deixou de ser apenas uma região de provações e privações. A sua capital usufrui do título de urbe mais austral do mundo.
Em 1975, Bruce Chatwin narrou-a “Na Patagónia” como “uma cidade sem crianças com residentes com faces que azularam devido ao frio e que lançam olhares hostis aos forasteiros”. Ainda assim, Ushuaia encanta, todos os anos, milhares de visitantes bem menos destemidos que os seus pioneiros.
Com 64.000 habitantes, Ushuaia é apenas a 97a urbe da Argentina. Desde há algumas décadas, o estatuto de cidade mais meridional à face da Terra tem-lhe concedido privilégios que compensam a sua pequenez.
A Disputa pelo Título de Cidade Mais Austral
Esse estatuto é invejado pelos suspeitos do costume, sempre que se debatem questões fronteiriças ou geográficas destas paragens: os rivais chilenos.
Do outro lado do Canal Beagle, mais a sul, longínqua mas real, fica Puerto Williams, a povoação congénere chilena que os Fueginos querem que continue sem fornecimento de gás natural e privada do estatuto de cidade para que o epíteto de Ushuaia não pule para lá da fronteira.
Com o objectivo de conquistar o embalo civilizacional que beneficiou a vizinha argentina, Puerto Williams reclama com frequência o título. Franco, o dono de um veleiro em que navegamos pelo litoral próximo, explica-nos a seriedade da questão, enquanto arruma o convés: “amigos, vocês passam cá uns dias.
É-vos difícil perceber o que está envolvido. Só para terem uma ideia… apesar de com isso ter prejuízo financeiro, o governo argentino barra o fornecimento de gás natural a Puerto Williams para evitar que se desenvolva. Impressionante não é? Na minha opinião fazem muito bem. Nem quero imaginar o rombo que a nossa economia ia sofrer se eles passassem a cidade.”
Os intentos de Puerto Williams são tão ambiciosos como difíceis de concretizar. A população local é constituída por apenas dois mil habitantes, na maioria famílias de militares aquartelados nas bases dos arredores.
De cada vez que os chilenos voltam a reclamar o título, Ushuaia derrota-os citando a legislação que define oficialmente como cidade uma entidade urbana com mais de 5000 habitantes. Incomparavelmente menos que os de Ushuaia.
A Origem Missionária de Ushuaia, a Última das Cidades
Ushuaia começou a formar-se, em 1870, por acção da Sociedade Missionária da América do Sul, uma instituição religiosa britânica que ali ergueu a sua filial na Terra do Fogo, para abordar e converter os indígenas, principalmente os de etnia Yahgan.
Pouco depois, os governantes argentinos construíram um presídio.
De 1884 até cerca de 1947, juntaram-se à pequena povoação milhares de vizinhos problemáticos: os criminosos e presos políticos mais temidos do país.
Por essa altura – a segunda metade do século XX -, fruto da sua posição privilegiada, Ushuaia assumiu-se como uma base naval de grande importância militar para a Argentina e aliados.
Pelo mesmo motivo – acrescido de significantes regalias financeiras concedidas pelo governo argentino – instalaram-se, mais recentemente, diversas empresas, principalmente de montagem de componentes electrónicos.
Os salários elevados e baixa tributação provocaram um afluxo de novos habitantes, recém-chegados argentinos e estrangeiros. Com o advento suplementar do turismo, a cidade desenvolveu-se até à sua dimensão e aspecto actual.
Ascensão ao Glaciar Martial e a Vista para a Última das Cidades
Na mesma manhã em que chegamos, saímos em direcção às montanhas e ao glaciar Martial que nos dizem ter vistas ideais para apreciar e compreender a localização dramática de Ushuaia.
Após uma longa subida que combina caminhada e teleférico, pelo meio de uma densa floresta ainda a amarelar, chegamos ao primeiro ponto panorâmico.
Bem acima da floresta verdejante de lengas e de nires, a meia-encosta da cordillera Martial – onde o glaciar homónimo se rende ao aquecimento global – revela a vastidão azul do Canal Beagle, a península sinuosa em que se espraia Ushuaia e o casario colorido, denso e numeroso que, em parte, a preenche.
Percebemos, então, melhor que nunca, como a derradeira cidade negociou a sua existência com a cordilheira e com o mar.
Só a componente natural deste panorama existia, em 1520, quando Fernão de Magalhães liderou a sua expedição através do estreito mais a norte, e descobriu uma inesperada passagem do oceano Atlântico para o Pacífico.
À data, Magalhães deparou-se, ali, com tribos indígenas Alakaluf, Mane’kenk, Selk’nam e Yamaná, os nativos que partilhavam a área. Surpreendeu-o a solução a que chegaram para sobreviverem ao frio austral, sempre munidos de pequenos fogos, incluindo, em deslocação, sobre as suas canoas.
Inspirado pela estranha abundância de fogueiras, Magalhães baptizou a região de Terra dos Fumos. O nome viria a ser alterado para o que perdura e define a última das províncias argentinas: Terra do Fogo.
De cada vez que o sol vence as nuvens, é reflectido pelos telhados metálicos das casas, feitos de zinco e alumínio.
Muitos são pintados. Isso dá ao casario um visual multicolor que se projecta no azul vivo do canal Beagle, para lá dos limites urbanos.
E nos tons variados das folhas das faias que cobrem a montanha até às imediações do glaciar.
Calle contra Calle, na Última das Cidades Austrais
Regressamos ao sopé da cordilheira e retomamos a deambulação por Ushuaia.
Depressa percebemos que o centro urbano da cidade se resume a umas quantas ruas que se repetem de forma linear, inclinadas e delimitadas por edifícios baixos. Abrange duas calles principais, a Maipu e a Deloqui.
À primeira vista, as verdadeiras atracções escasseiam. Destacam-se sobretudo os edifícios históricos da Legislatura Provincial, a Iglésia de la Merced, a Casa Beban e o Presídio.
Não vemos sinal de vendedores de rua ou angariadores de clientes a pressionar quem passa mas, apesar de tranquilo, este cientro depressa se prova uma armadilha comercial, repleto de lojas de recordações, roupa e equipamento para os desportos de Inverno, de pequenas agências de tours, bares, restaurantes e geladarias.
Mas não foi o turismo que esteve na origem da fundação de Ushuaia. E a capital fuegina continua pouco disposta a depender apenas dos forasteiros.
A abundância de peixe e de gás natural facilita a tarefa e os governos argentino e da Terra do Fogo têm cumprido a sua parte concedendo incentivos fiscais que atraíram várias multinacionais tecnológicas, como a Grundig.
Chegamos ao fim da encosta. Lá desvendamos a Baía de Ushuaia e as paisagens firmes da Cordilheira Darwin, retocadas pela luz suave que sempre incide neste recanto meridional do mundo.
A Inesperada Invasão Francesa de Ushuaia
Seguimos ao longo da baía até chegarmos ao pontão que acolhe os navios militares, de carga e de passageiros atracados na cidade. Ficamos a observá-los do Molhe do Turista até que, subitamente, de e uma enorme fragata de guerra francesa na extremidade da doca, zarpam vários zodiacs carregados de marinheiros.
Avançam, a grande velocidade, na nossa direcção. Desembarcam exactamente no passadiço em que nos encontramos que passa de refúgio tranquilo a “território gaulês”. Forma-se um frenesim justificado, se vindo de uma tripulação que há muitos dias não põe pé em terra.
Quando nada o fazia prever, damos por nós a fotografar grupos de marujos francius que fazem questão de se eternizar em frente à placa que assinala “Ushuaia: fin del mundo”. “La derniére, monsieur, s’il vous plait! ”
Antárctida: rumo à Última Fronteira
A partir do Molhe do Turista, avistam-se os navios acabados de chegar ou prestes a zarpar para o continente gelado. São antigas embarcações científicas ou militares russas, argentinas e americanas: o “Orlova“, o “M/V Discovery“, o “Antartica AA“, o “M/V Grigoriy Mikheev“, entre outros, e até uma antiga barca holandesa – o “Bark Europa” – que o recém-descoberto potencial turístico da Antárctida fez com que fossem transformadas em ferries, se bem que artilhados contra ondas gigantescas e mares brancos e semi-sólidos.
À espera do início da viagem das suas vidas estão passageiros com contas bancárias recheadas. O continente gelado está ali a apenas 1000km mas aventura não é para todos. Os programas mais acessíveis rondam os 3000 dólares para percursos de 9 a 15 dias.
Parece-nos dinheiro bem gasto. Ao observarmos os itinerários, detectamos lugares míticos: as Falkland (Malvinas), o Cabo Horn, a Geórgia do Sul e as Shetland do Sul ainda antes de ancorar na Península Antárctica.
Percorremos o pontão de cima abaixo e partilhamos um pouco da agitação e da expectativa que paira no ar.
Há uma greve no aeroporto de Ezeiza, de Buenos Aires. Atrasados, os passageiros chegam a conta gotas . Enquanto estes são recebidos pela tripulação e a sua bagagem é içada por grua, os que conseguiram cumprir o horário convivem a bordo.
A pressa é relativa. O embarque oficial devia fazer-se nessa tarde mas os barcos só zarpam na madrugada seguinte.
O Anacrónico Bark Europa
Damos atenção especial ao Bark Europa, uma embarcação de três mastros, movida por um máximo de 30 velas mas, quando necessário, apoiada por motores. Foi construída em 1911 e restaurada em 1994 para conduzir as mais diversas expedições.
Recentemente foi-lhe atribuído um itinerário anual com início em Amsterdão, que passa por Lisboa e Tenerife, continua até Salvador e Ushuaia onde se mantém de fins de Novembro a fins de Fevereiro operando sucessivas expedições à Antárctida.
A tripulação do “Bark Europa” é composta por catorze marinheiros profissionais mas integra dezenas de voluntários que assim podem realizar o sonho de navegar à moda antiga, naquelas paragens desafiantes do Planeta
Do cais, observamos um dos tripulantes residentes cumprir diversas tarefas a toda a latitude dos mastros e do labirinto de cordas que sustém as velas.
Trajado de jardineira de ganga, à moda arrojada dos marinheiros dos nossos tempos, move-se com a ligeireza ganha em intermináveis dias de treino mas também com a segurança da experiência adquirida.
No convés, os passageiros admiram as manobras, conversam e saboreiam vinho. Entretanto escurece. Vamos investigar outro barco, ancorado em terra.
Após uma noite revigorante de sono, na madrugada seguinte, os navios e passageiros na longa doca vão deixar Ushuaia, para lá do fim do mundo.