É tudo menos fácil, para quem acaba de chegar, intuir a configuração excêntrica de Valletta.
Situada no extremo da península de Sceberras, no âmago de um vasto esteiro recortado, a capital maltesa ostenta duas longas marginais, qual delas a mais elegante e imponente.
Estávamos instalados em Il Gzira, no litoral do estuário de Marsamxett que encerra a Ilha Manoel, mesmo de frente para a catedral Anglicana de São Paulo. Do lado de lá do braço de mar, a sua gigantesca abóboda e o campanário da mesma altura impunham-se acima da linha amarelo-torrada do casario de arenito.
Tínhamos já visto imagens daquela outra frente da cidade na Internet, em livros e em postais. Mas, manhã após manhã, entrávamos no carro e seguíamos no sentido contrário. Passávamos a ilha Manoel e contornávamos a marina de iates de Msida.
Percorridos três ou quatro meandros sem nunca os percebermos com maior profundidade que a mera orientação emprestada pelo Google Maps, íamos dar ao outro lado da cidade, o elevado, dos Upper Barrack Gardens, ou, em alternativa, a ruas de Cospicua, uma das três cidades vizinhas de Valletta.
Valletta e a Vista das Suas Irmãs Maltesas
Do trio, Cospicua é a mais recolhida. Senglea e Birgu (Città Vittoriosa), cada qual numa península rival, rasgam o Grande Estuário e projectam as suas ruelas e marinas atafulhadas na direcção da capital.
Valletta tem 800 por 1000 metros, bem menos que os 7.09 km2 de São Marino e os 17.5km2 de Vaduz. Caso a eclesial Cidade do Vaticano seja – como deve ser – considerada um caso à parte, Valletta confirma-se, sem apelo, a mais ínfima das capitais europeias.
Quando nos embasbacamos com a beleza do panorama revelado pelos terraços dos Barrak Gardens, percebemos como a, ainda assim, grande cidade maltesa contempla, entre a benevolência e a indiferença, as suas irmãs mais “baixas”.
Ao invés, sempre que a admiramos da extremidade pontiaguda de Senglea, a partir do posto de vigia La Guardiola, ou das ameias do Forti Sant’ Anglu de Birgu, nós, como os moradores daqueles que são alguns dos bairros mais pitorescos à face da Terra, olhamos para cima e prestamos-lhe uma merecida vassalagem.
Os terraços do Bastião de São Pedro e São João ficam à pinha de visitantes na expectativa do meio-dia e dos disparos da Salutting Battery que, embora pareçam alvejar os ferries e cargueiros no Grand Harbour abaixo, se limitam a reconstituir o seu antigo uso cerimonial.
Por altura da qualificação de Valletta como Património Mundial, uma das muitas razões invocadas pela UNESCO foi o facto de “ser uma das áreas com maior concentração histórica do mundo”. Para gáudio dos forasteiros interessados no seu passado épico, tal constatação repete-se sem tréguas.
Uma Obra Majestosa dos Cavaleiros Hospitalários
Valletta surgiu às mãos dos Cavaleiros de São João, os Hospitalários, numa altura em que Malta integrava o vasto Império Espanhol.
Fundada, em Jerusalém, em 1070, para garantir auxílio dos peregrinos e cruzados doentes ou feridos nas batalhas, a Ordem de São João viu-se obrigada a retirar quando as forças muçulmanas tomaram a Terra Santa e a maior parte do Mediterrâneo Oriental. Sedeou-se em Chipre.
Mudou-se para Rodes. Em 1530, saturado dos danos provocados pela marinha otomana no Mediterrâneo, Carlos V tê-la-á incitado a instalar-se em Malta.
À chegada, os Cavaleiros Hospitalários desiludiram-se com a inospitalidade da ilha em que as estruturas de defesa eram inexistentes e os próprios habitantes os rejeitavam. Estavam, no entanto, habituados a desafios. Liderados pelo gaulês Jean Parisot de Valette, dedicaram-se a fortificar as entradas para o Grand Harbour e para o actual estuário de Marsamxett.
Em boa hora. Apenas trinta e cinco anos depois, já apoiados pelos habitantes malteses, resistiram durante quatro meses ao Grande Cerco imposto pelos Otomanos e proclamaram a sua primeira vitória. De recém-chegados algo ressentidos, os Hospitalários passaram a ser vistos como salvadores da Europa.
Estimulados, embrenharam-se na construção da primeira cidade planeada na íntegra do Velho Mundo, entretanto baptizada em honra do Grão-Mestre Valette, o herói do fracassado cerco.
Em Honra de Jean Parisot de Valette
Valette pediu auxílio a reis e príncipes da Europa. O Papa Pio V enviou-lhe Francesco Laparelli, o seu arquitecto militar. Filipe II de Espanha contribuiu com um significativo apoio financeiro.
Cerca de 8000 escravos e artesãos trabalharam a península de Sceberras. Apararam-lhe as encostas e alisaram o cimo. Delinearam uma grelha geométrica que viria a acolher prédios altos que bastasse para fazerem sombra às ruas, construídas rectas e amplas para permitirem que as brisas marinhas refrescassem o longo Verão mediterrânico.
Tal como os admiramos até à exaustão, até os prédios mais modernos nos parecem seculares. Alguns têm quatro, cinco e até seis andares assentes em bases que fazem de ruelas elevadas. Ao nível do verdadeiro solo, alojam garagens ou arrecadações individualizadas com portões coloridos.
Um pouco por toda a Valletta mas não só, em cada andar dos prédios mais genuínos coexistem mini-marquises tão ou mais peculiares. Em certas ruas, formam um delicioso sortido de varandins de madeira encaixotados.
Exploramos a zona interior da península, a começar em Floriana, outra pequena urbe às portas da capital. Triq (rua) após triq, confrontamo-nos com a Fonte Tritão e atravessamos o Portal da Cidade. Como consequência de sucessivas tentativas de conquista e de ataques, aquela era já a quinta entrada ali erguida.
Dela se encarregou, em 2011, o arquitecto italiano Renzo Piano que desenhou ainda o edifício do Parlamento Nacional e a conversão das ruínas da Ópera Real num teatro ao ar livre.
Dali até ao limite nordeste estabelecido pelo Forte St Elmo e pelos Bastiões de Abrecrombie, Ball e São Gregório, a rede urbana de Valletta desenrola-se em volta das suas maiores triqs e misrahs (praças) que acolhem os jardins e os cafés e esplanadas mais caros da nação.
Uma Pequena Capital à Pinha
Este desafogo não chega a todo o lado. Nas suas vertentes e orlas, Valletta e, ainda mais, as cidades vizinhas apertam-se de tal maneira que os condóminos criam esquemas engenhosos de turnos e segundas e terceiras filas para assim estacionarem os seus pequenos carros.
Eternizam, desta forma, uma das maiores densidades populacionais do Planeta. Mesmo conscientes desse e de tantos outros prodígios, os modestos malteses chamam a Valletta “Il-Belt”, “A Cidade”. A própria nomenclatura conflituosa da capital prova-se sintomática da sua magnificência histórica.
Na génese, os Cavaleiros Hospitalários intitularam-na “Humilissima Civita Valletta”. Os anos fluíram. Malta, Valletta em particular, fizeram parte da república francesa de 1798 a 1800, após – mesmo conhecendo a neutralidade da ilha – Napoleão ter ordenado a sua invasão.
Pouco depois, os malteses, os Britânicos – apoiados por tropas portuguesas e, mais tarde sicilianas e napolitanas – sujeitaram os invasores a uma fome desesperada e à rendição. Daí, até 1813, Malta tornou-se um Protectorado Britânico e, logo, uma das muitas colónias de Sua Majestade.
Essa era anglófona continua estampada no arquipélago: o inglês é a segunda língua, a condução faz-se pela esquerda, as cabines telefónicas e caixas de correio são vermelhas e, a mais solene de todas, o Victoria Gate de Valletta, erguido em honra da rainha Victoria e que serve de principal entrada na cidade a quem ascende da margem do Grand Harbour.
Nos mais de quatrocentos anos que decorreram desde a fundação até 1964, quando Malta proclamou a sua independência, a reputação de Valletta reforçou-se. A cidade foi dotada de mais e mais fortificações, catedrais e igrejas, palácios barrocos, jardins e lares senhoriais distintos.
A menos de metade desses quatro séculos, o apodo de humildade atribuído pelos Hospitalários já não lhe servia. As Casas Reais da Europa tinham-se rendido à sua pompa e esplendor. Tratavam-na por Superbissima (A Mais Orgulhosa).
46 Grãos-Mestres, dos quais Três Portugueses
Do pioneiro francês Jean Parisot Valette até aos dias de hoje, quarenta e seis Grão-Mestres de distintas nacionalidades, dos Cavaleiros Hospitalários e da Ordem Soberana Militar de Malta contribuíram para esta evolução. Três deles foram portugueses. O primeiro, Luís Mendes de Vasconcellos, exerceu apenas seis meses.
António Manoel de Vilhena e Manuel Pinto da Fonseca tiveram no cargo bastante tempo. Deixaram em Valletta as suas marcas.
O ilhéu e o forte porque passávamos todas as manhãs vindos de Il Gzira tinham o nome do segundo. Foi Manoel de Vilhena quem financiou a construção do forte na ilha, na sua altura apenas chamada de Isolotto.
O forte ficou completo em 1733. Seria usado até ao século XX, como um dos muitos acrescentos vitais às defesas de Malta e de Gozo assegurados pelo Grão-Mestre português. Mas um seu outro legado, dá ainda mais vida a Valletta.
Descemos a Triq it-Teatru l-Antik e espreitamos o aconchegante (apenas 623 lugares sentados) Teatro Manoel, inaugurado, em 1732, enquanto Teatro Pubblico. Encanta-nos constatar como resistiu aos séculos – e aos bombardeamentos da 2ª Guerra Mundial – e é considerado o terceiro teatro em funcionamento mais antigo da Europa e o ancião da Commonwealth.
Depois de muito calcorrear a Valletta alisada do cimo da península de Sceberras, descemos à Waterfront, uma zona de lazer repleta de esplanadas sobre o Grand Harbour em que atracam enormes cruzeiros.
A Obra Onerosa de Manuel Pinto da Fonseca
Esta secção da Marina de Valleta foi desenvolvida a partir de 1752, pelo Grão-Mestre português que se seguiu. Nascido em Lamego, Manuel Pinto de Fonseca lá mandou erguer uma igreja e dezanove armazéns e lojas agora ocupados por bares, restaurantes e outlets, mais conhecidos por Pinto Stores.
Em sincronia com o que se passava no Império Português, no Espanhol e em França, Pinto da Fonseca expulsou os Jesuítas de Malta. Confiscou as suas propriedades e converteu-as numa Pubblica Università di Studi Generali, hoje, a Universidade de Malta.
Várias destas suas medidas radicais e a vida que levava na ilha – tão faustosa que gerava inveja nas mais nobres famílias – granjearam-lhe um bom número de inimigos. O facto de ter conduzido a Ordem dos Cavaleiros Hospitalários à bancarrota só aumentou a lista. Pinto faleceu em 1773 com a idade avançada de 91 anos.
Tem repouso eterno onde jazem os mais relevantes Grão-Mestres Hospitalários e de Malta, a Co-Catedral de São João. Quem, como nós, se rendeu à pequena mas soberba Valletta sabe que é tanta a sua virtude que lhe assenta bem alguma mácula.
Mais informação sobre Valletta na página respectiva da UNESCO.