Quando nos confrontamos com a enorme furna, em boa parte forrada de musgo e líquenes, reconfirmamos o quanto o Paraná se revela pródigo em fenómenos e exuberâncias naturais.
A que nos assombrava, mal se podia comparar com o expoente fluvial e surreal das cataratas também paranaenses do Iguaçu.
Tinha, todavia, o seu próprio encanto misterioso, o de um grande algar aberto na Terra, ao longo dos tempos, por um rio baptizado a condizer, o Quebra Pedra.
Nesse dia, como há muito, o seu caudal precipitava-se de uma altura de 30 metros. Caía, aos tombos, entre lajes musgosas.
Para uma lagoa com leito do mesmo arenito esculpido pelo rio e visual de praia.
Os feixes de luz que penetravam pela abertura no alto davam a sensação de que Deus a apontava.
No seu conjunto, o lugar era conhecido como Buraco do Padre.
A génese histórica do nome, partilhada pelos Campos Gerais em redor, acrescentava-lhe um imaginário de época que nos deslumbrava a dobrar.
Os Campos Gerais do Paraná nos Primórdios Coloniais do Brasil
Vivê-lo, passa por recuar até meio do século XVII, cerca de 150 anos decorridos desde o desembarque de Pedro Alvares Cabral no litoral de Porto Seguro.
À passagem para o século XVII, destacavam-se, no Paraná dos nossos dias, as vilas lusas de Paranaguá, com a Ilha do Mel ao largo, e de Nª Srª da Luz dos Pinhais que evoluiu para a contemporânea Curitiba.
Pouco depois, os bandeirantes que desbravavam o interior desconhecido descobriram ouro. Num ápice, o Paraná atraiu uma horda de exploradores determinados a prospectar e a prosperar.
Como quase sempre acontecia, acompanharam-nos Jesuítas incumbidos de converter os indígenas ao Cristianismo, de supervisionar e abençoar a sua submissão aos invasores.
Os Carmelitas seguiram os passos dos Jesuítas. Não tarda, os religiosos lusos eram vistos pelos quatro cantos dos Campos Gerais, em abordagens proselitistas a povoados indígenas.
Amiúde, em lugares ermos propensos ao retiro e á oração, como era o caso da furna do rio Quebra Pedra.
Da Concessão de Sesmarias à Profusão de Fazendas e Sítios
A Coroa Portuguesa transpôs para o Brasil o modelo das sesmarias.
A concessão de sesmarias nos Campos Gerais do Paraná traduziu-se numa multiplicidade de fazendas e sítios (respectivamente 50 e 125, em 1772).
Foi nomeado administrador geral destas partes, um nobre já nascido em São Paulo. Perante a dificuldade de forçar os indígenas ao trabalho de campo, Pedro Taques de Almeida – era essa a sua graça – validou a aquisição de escravos de África.
A população dos Campos Gerais passou a ser composta pelos colonos fazendeiros e, em muito maior número, por escravos indígenas, negros e pelos seus mestiços.
O contexto social da região complexificou-se.
À Margem das Fazendas, a Mineração Liderada pelos Bandeirantes
Numa realidade paralela a das fazendas, os bandeirantes apoderavam-se de polos mineiros carentes de mão-de-obra escrava, de mulas e cavalos carregadores.
Aptos a fornecerem-nos, criadores mais a sul habituaram-se a fazerem-nos seguir para norte, via Caminho Real de Viamão e por diversas rotas alternativas.
Todas essas rotas convergiam para uma mesma povoação-feira, Sorocaba, situada no sudeste de São Paulo.
Quase todas provinham do actual Rio Grande do Sul, onde as planícies eram vastas, cobertas de pasto viçoso, perfeitas para a criação dos equídeos.
Tropas e Tropeiros: os fornecedores Brasileiros de Mulas e Cavalos
Os homens encarregues de os levarem até Sorocaba compunham tropas, à imagem dos cowboys norte-americanos, encarregues de tratarem dos equídeos e de os protegerem.
Uma das preocupações que guiava os tropeiros que, ao longo do percurso, os animais pudessem pastar, fortalecer-se e valorizar-se.
Ora, menos planas e vastas que as gaúchas, mas pluviosas, sulcadas por rios e salpicadas de fazendas que serviam de estações ganadeiras, as terras dos Campos Gerais cedo se provaram ideais.
O que nos remete de volta ao Buraco do Padre.
A Rota Tropeira via rio Quebra-Pedra e Buraco do Padre
Estima-se que um dos rumos eleitos dos tropeiros passasse pelo rio Quebra-Pedra.
Ora, abundavam narrativas dos tropeiros de que, quando atingiam o cimo da furna, avistavam, com frequência, os padres jesuítas evangelizadores dos indígenas, em oração.
Mais preocupados com a fluência que com a eloquência, os tropeiros popularizaram o termo Buraco do Padre.
A pouca distância, uma falha apertada entre duas falésias musgosas em que, fracturas recentes revelam lajes escarlates, preserva um nome sem a mesma base histórica.
Em tempos recentes, as gentes escolheram-no para que condissesse com o Buraco do Padre. É a Fenda da Freira.
Estes dois prodígios geológicos formam uma das atracções vizinhas de Ponta Grossa, uma das três cidades principais dos Campos Gerais.
Vila Velha e o Parque Natural repleto de Esculturas Geológicas
A 35km para sudoeste, encontramos uma outra, congénere, bastante mais vasta, o Parque Estadual de Vila Velha. Protegido, desde 1966, este outro domínio geológico concentra, nos seus 18km2, uma profusão de esculturas erosivas com as mais distintas formas: tartaruga, esfinge, cabeça de índio e afins.
Lá abundam ainda paredões e torres que, no seu conjunto, lembram uma povoação medieval e inspiraram o título Vila Velha.
Em virtude da sua monumentalidade, a “Taça” tornou-se a imagem de marca do parque e o cartão-postal da região de Ponta Grossa.
De certa maneira, faz-nos lembrar um Graal.
O que enriquece o imaginário lítico-religioso destas paragens e nos abre caminho a demandas mais setentrionais.
Passamos a noite em Ponta Grossa. Na manhã seguinte, seguimos a principal rota tropeira dos Campos Gerais. Subimos até à vizinha cidade de Castro.
Do Pouso do Iapó à Cidade de Castro
A povoação foi fundada, em 1778, como evolução da fazenda e lugarejo Pouso do Iapó, erguido, 74 anos antes, numa margem do rio homónimo, como sesmaria pioneira da região.
Em 1750, o Pouso do Iapó foi doado aos Padres Carmelitas.
Estes, adicionaram dois novos edifícios que serviam de sanzala dos escravos que (ao contrário dos restantes fazendeiros) mantinham livres.
Mais tarde, passou a ser conhecida por fazenda do Capão Alto.
O Conflito Tripartido entre Indígenas, Portugueses e rivais Espanhóis
No início do século XVIII, parte dos indígenas continuava por apaziguar, quanto mais converter.
Como retratou Roland Joffé em ”A Missão”, os bandeirantes de São Paulo perseguiam-nos e escravizavam-nos.
Obcecados por esse fito, chegaram a destruir missões religiosas. Como se não bastasse, os rivais coloniais espanhóis disputavam-nos.
Tal como os bandeirantes portugueses, além dos escravos, Espanha ambicionava as terras indígenas fora da respectiva fronteira do Tratado de Tordesilhas.
Sucessivas expedições espanholas esquadrinhavam aquele recanto do Novo Mundo, desde o litoral meridional de Vera Cruz até Assunção, no Paraguai. E mais além.
Os índios coroados, em particular, patrulhavam o imenso desfiladeiro de Guartelá, diz-se que o 7º mais longo à face da Terra. Atacavam amiúde os tropeiros que cruzavam os rios Iapó e Tibagi.
Quando o Pouso do Iapó se transformou num povoado liderado por militares experientes, por fim, deixaram de se sentir por sua conta.
O Baptismo de Castro em Honra de um Ministro Português
No final do século XVIII, a, entretanto, denominada vila Sant’Ana do Iapó, foi promovida a Castro.
Com este rebaptismo, a cidade homenageou Martinho de Melo Castro, um ministro dos Negócios Ultramarinos dos reinados de D. José I e Dª Maria I que se notabilizou pelas suas reformas no sistema colonial português.
O acontecimento que se narra na génese da mudança de nome é, também ele, um episódio curioso.
A determinada altura, o Martinho de Melo Castro visitou a prisão política do Limoeiro, em Lisboa. Lá se deparou um tal de capitão Manoel Gonçalves Guimarães, que teria enriquecido no Brasil a contrabandear ouro.
Ora, ao ver o ministro, Manoel Guimarães ajoelhou-se e implorou pela sua liberdade. Para a conseguir, disse ao ministro que vivia numa povoação do Brasil que se desenvolvia mas sem rei nem roque e que os crimes, fossem o que fossem, se multiplicavam.
Prometeu ainda que, se o ministro lhe concedesse a liberdade, regressaria, trataria de bem administrar a povoação de forma a elevá-la a vila a que iria dar o nome do ministro. Martinho de Melo Castro sentiu-se honrado com a promessa.
De tal maneira que fez com que o capitão fosse libertado.
Agradecido, Manoel Guimarães voltou a Sant’Ana do Iapó. Regressado, gizou um plano e os devidos contactos com oficiais de Paranaguá que levaram à promoção da povoação à Vila de Castro.
O Declínio do Tropeirismo e uma Nova Imigração
No início do século XX, por fim, a modernidade venceu os tropeiros e as suas tropas. O tropeirismo perdura na cultura da região dos Campos Gerais.
Nas expressões locais, na gastronomia, nos trajes e tanto mais. Castro e a Fazenda Capão Alto dedicam-lhes museus incontornáveis que temos o privilégio de visitar.
A história da região seguiu o seu rumo pós-tropeiro.
Castrolanda: a Holanda transposta para o Interior do Paraná
Com o fim da 2ª Guerra Mundial, numa altura em que o Brasil ainda carecia de mão-de-obra para as suas terras sem fim e milhões de europeus ansiavam por recomeçar as vidas, os Campos Gerais acolheram milhares de imigrantes polacos, russos, ucranianos, alemães e italianos, entre outros.
Nos arredores de Castro surpreendemo-nos com uma das suas “novas” povoações mais emblemáticas, Castrolanda, erguida por holandeses sem espaço para desenvolverem os seus projectos agropecuários, nos Países Baixos.
Em pleno Brasil, damos connosco numa inesperada Kinkderdijk brasileira, dotada de vacas frísias que pastam entre araucárias paranaenses, de um moinho característico e de um museu repleto de artefactos holandeses.
Cabem cinco Países Baixos no diminuto Paraná.
Desde a descoberta pelos europeus, Tropeirismo fora, até aos nossos dias, o Paraná acolheu todo um Mundo.