Deixamos a vizinha urbe de Swakopmund à conta.
E a contar com o caminho tal como o fim de dia anterior o tinha revelado, uma estrada B2, recta sem fim, quase sem trânsito. Depressa percebemos o quanto nos enganávamos.
Mal cruzamos o leito seco do rio Swakop que dá o nome à cidade, metemo-nos numa névoa matinal densa e flutuante. Cobria a maior parte da beira-mar entre o oceano e as dunas que antecediam a entrega do deserto do Namibe ao Atlântico.
A névoa pairava em sucessivas bolsas. Envolvia o asfalto. A espaços, concedia-nos visões de cenários namibianos surreais. A leste da estrada, montanhas de areia que a quase contraluz convertia em mistérios voláteis, lares de órix, de gazelas, de hienas-castanhas que ansiávamos vislumbrar. Do lado oposto, do mar, areais intermináveis.
Percorridos quase 20km, chegamos à entrada de Langstrand, um refúgio balnear que surge do nada, um agrupamento de casas pré-fabricadas, umas brancas, várias coloridas, que nos pareciam recém-montadas a partir dos respectivos kits.
O satélite habitacional de Langstrand é administrado por Walvis Bay. Cumpridos outros 19km, damos com o desvio para esta que era a cidade destino.
Na sua 5ª rua, cortamos para o porto, o maior da Namíbia. Juntamo-nos a um grupo de passageiros que, como nós, sabiam o quanto prometia aquela incursão à Baía de Walvis, assim baptizada pelos colonos africâner devido a quantidade de baleias (walvis) que lá encontravam.
Walvis Bay: Navegação Rumo ao Pelican Point
Num ápice, zarpamos a bordo de uma embarcação Mola Mola.
Para um retalho de Atlântico azul-escuro e frígido, aberto apenas a norte, a direção de que, à falta de marinhas, continuavam a provir vagas de neblina que o sol tropical fazia dissipar.
Aos poucos, concluímos que quase tudo na baía de Walvis aparecia em quantidade.
Enormes bandos de corvos-marinhos surgiam das profundezas da névoa em voos rápidos, tão rasantes como a neblina.
Do convés superior, víamos como a embarcação os forçava a desvios por pouco falhados.
Navegávamos ainda contra uma maré de milhares de alforrecas rosadas.
Quando nos acercamos da ponta de Pelican Point, juntam-se a essa fauna crescente bandos de aves que inspiraram o baptismo do lugar.
E colónias de leões-marinhos irrequietos.
Oli, o guia, convida seus representantes para bordo.
Sobe, primeiro, um leão-marinho felizardo que a tripulação alimenta de peixes.
Segue-se um pelicano-branco volumoso que haveria de nos acompanhar durante quase toda a expedição.
Atingimos o extremo daquela península arenosa.
Ondas vigorosas embatem no areal elevado e salpicam as centenas de leões-marinhos que o partilham.
Ali próximas, duas estruturas quebram o predomínio natural da paisagem.
Uma delas é uma plataforma petrolífera, numa área em que a própria portuguesa Galp tem tentado a sua sorte.
A outra, um grande navio-diamantífero que buscava pedras preciosas no leito marinho.
Formavam um duo de miragens modernas que nos intrigavam, mas que nunca atormentaram os descobridores europeus destas paragens.
Liderados por um comandante português, claro está.
O Pioneirismo e Desinteresse Português na Colonização destas Paragens
Em 1485, Diogo Cão atingiu o que denominaria de Cabo Cruz, 160km a norte de Walvis Bay, hoje, famoso pelo padrão dos descobrimentos que celebra a sua façanha.
Ainda mais, pela sua colónia populosa de lobos-marinhos-do-cabo, uma das maiores à face da Terra.
Decorridos dois anos, Bartolomeu Dias seguiu-lhe o rasto, em busca de uma passagem para o oceano Índico e para as terras das especiarias.
No encalço do Cabo das Tormentas, fez o navio Almirante São Cristóvão ancorar na mesma baía de que estávamos prestes a sair.
Baptizou o abrigo de Golfo de Santa Maria da Conceição.
Por essa altura, a prioridade da Coroa Portuguesa era atingir as Índias, diz-se que, em simultâneo, encontrar o mítico Prestes João.
Desérticas e inóspitas como se revelavam, estas terras não suscitaram que o rei D. João II as reclamasse.
Aliás, o deserto do Namibe desencorajou de tal maneira as potências coloniais europeias que, só passados mais de três séculos (em 1793), os Países Baixos reivindicaram a região.
Seguiram-se os ingleses. E, em 1910, dela se apoderaram os sul-africanos.
Até à independência namibiana de 1990.
A contradizer o secular desprezo inicial da Europa, nós, como qualquer passageiro da agência Mola Mola, continuávamos num sério deslumbre.
De Volta ao Interior da Baía, sempre na Companhia de Leões-Marinhos
O timoneiro abandona a proteção da Walvis Bay. Ilude as vagas, por ali, poderosas, em busca dos cetáceos que lhe deram o nome. Nessa manhã, em vão.
De acordo, regressamos para a protecção da baía.
Navegamos o mais próximo possível das colónias de leões-marinhos, com respeito para as normas que protegiam os animais.
Essas regras não se aplicavam, da mesma maneira, a vários caiaquers.
Estes, pagaiavam entre centenas de espécimes que nadavam e executavam acrobacias e tropelias em redor, a uns poucos metros da multidão ruidosa, cheirosa e conflituosa que disputava o areal e os raios de sol.
Por altura do antigo farol de Pelican Point, hoje, convertido em lodge requintado, um chacal que tinha percorrido toda a península em busca de alimento, cirandava entre a colónia.
De olho nas crias desprotegidas ou de eventuais placentas libertadas pelas fêmeas.
Desembarcamos a pouca distância do velho farol.
Num acampamento braai já preparado, servem-nos ostras e espumante de entrada. Segue-se um repasto revigorante.
De Barco para Jipe, Península de Pelican Point Abaixo
Terminado o almoço, passamos do barco para um jipe, conduzido por Conrad, um morador de Walvis Bay que conhecia de cor e salteado aquelas paragens, e o que nelas podia ou não fazer.
Conrad passa por uns poucos surfistas que surfavam as longas e famosas ondas da Skeleton (Donkey) Bay.
Desse inusitado spot atlântico, prosseguimos para base da península.
De onde, por sua vez, cruzamos a planície lamacenta de Sandwich Harbour para o domínio homónimo em que as dunas hiperbólicas do Namibe contêm o Atlântico.
Na transição, num trecho excepcionalmente vegetado, Conrad pede-nos atenção à paisagem, de forma a encontrarmos espécimes de hienas ou herbívoros.
Detectamos impalas-de-cara-negra, gazelas e, o ponto alto, uma pequena manada de órix desconfiados.
O Inverno do Hemisfério Sul causava ventos e vagas exageradas.
As vagas, em particular, esticavam o oceano mesmo até à base das dunas. Inviabilizavam que então percorrêssemos a “zona da morte”, assim denominada por os veículos terem um tempo definido pelas marés para a percorrerem e por, demasiadas vezes, se verem encurralados pelo galgar do mar.
Conrad era demasiado experiente para cometer esse erro.
À Descoberta das Dunas Hiperbólicas do Namibe
De acordo, embrenhamo-nos para o interior do Namibe, por um labirinto de dunas que navegamos em modo de montanha-russa, com subidas graduais e descidas que o condutor escolhia o mais vertiginosas possível, por forma a irrigar a expedição de adrenalina.
No processo, atingimos a parte detrás de uma derradeira duna, cuja enorme ravina de areia, terminava 100 metros abaixo, quase directa no oceano.
“Ok, já cá estamos!” anuncia-nos o guia com tom de missão cumprida. “Se caminharem pela crista da duna acima, vão dar com a melhor vista destas paragens”.
Dito e feito.
Com o sol quase a sumir-se no Atlântico e a névoa matinal há muito dissipada, um vendaval sul-norte fazia levantar areia das arestas expostas, dificultava-nos a visão e a marcha.
Subimos o suficiente para contemplarmos aquele panorama limiar, o da duna a estender-se, a perder de vista, com o Atlântico, submisso, a seus pés.
De Regresso à Cidade de Walvis Bay, com Passagem na Lagoa dos Flamingos
Meia-hora depois, voltamos a atravessar a imensidão arenosa do Parque Nacional Namib-Naukluft.
Logo, o reduto rosado das salinas de Walvis Bay.
Já na marginal da cidade, Conrad detém-se para apreciarmos a lagoa dos flamingos e as centenas de aves pernaltas que, a essa hora, por lá se agrupavam.
Pouco depois, Walvis Bay assumiu o seu tranquilo turno da noite.
Regressamos a Swakopmund, pela mesma B2 em recta sem fim e sem trânsito, com que voltámos a poder contar.