Chegados ao miradouro da Ponta da Calheta, o estreito no limiar da praia sem fim do Porto Santo torna o mar menos profundo.
Pinta o Boqueirão de Baixo de um azul-turquesa resplandecente que contrasta com a negrura e crueza geológica do Ilhéu da Cal por diante.
Hoje, o visual dourado e translúcido que fez da grande praia o principal atributo financeiro da ilha pouco ou nada deixa saber das agruras que sucessivas gerações de portosantenses passaram em função do maior dos seus ilhéus.
Desde os tempos remotos da colonização da ilha que a secura inóspita de Porto Santo – a partir de 1940, por exemplo, passaram-se doze anos sem pluviosidade – inviabilizou cultivos e prados que permitissem a criação de animais de maior porte.
Toda e qualquer matéria-prima lá encontrada tinha valor redobrado. Foi o caso do calcário, a fonte de cal que acabou por inspirar o baptismo do também chamado Ilhéu de Baixo.
O Ilhéu de Baixo e a Era Portosantense da Cal
Durante o século XX, alguns empresários viram na diversidade mineral do sub-arquipélago de Porto Santo uma riqueza que permitiu atenuar as carências agrícolas e pecuárias das ilhas. Foram instaladas pedreiras de calcário no ainda chamado Ilhéu de Baixo.
Extraído a grande custo, de minas e galerias, o calcário era transportado de barco para a ilha-mãe e, lá, transformado em cal destinado às edificações que aumentavam no Porto Santo, ainda mais na ilha da Madeira, que os portosantenses se habituaram a fornecer em troca de vegetais, frutas e outros mantimentos que tinham dificuldade em obter.
O calcário era cozinhado em grandes fornos com feitio de cone invertido. Chegaram a ser dezassete. E libertavam um aroma intenso que, às tantas, os nativos da ilha reconheciam fosse onde fosse.
Mesmo se a cozedura do calcário se fazia a temperaturas elevadíssimas, nenhuma fase da produção da cal se revelava tão arriscada como a da extração. Registaram-se vários acidentes nas minas e pedreiras. Num único desabamento de rochas, pereceram dezasseis homens.
Nas últimas décadas, o turismo começou a compensar as carências de Porto Santo. Alguns destes fornos foram preservados como património histórico incontornável da ilha.
Atraem os forasteiros mais curiosos a quem o reduto do grande areal dourado, só por si, não faz umas boas férias.
Périplo pelo Porto Santo Dourado. E Pelo Dramático Legado pelo Vulcanismo
Sobretudo a quem chega de um período passado na vizinha ilha da Madeira, ou de países sem litoral ou com litoral todo ele rochoso, a grande praia de Porto Santo surge como uma espécie de miragem real, como um sonho de deleite balnear com 9km de que custa despertar.
Carolina Freitas, a guia nativa incumbida de nos mostrar a sua ilha conhece bem o modo All Inclusive All Praia e Preguiça em que demasiados visitantes passam os dias. Habituada a repetir as caminhadas e explorações mais recompensadoras da ilha, mantém um vigor físico impressionante que, numa fase de inactividade própria do confinamento a que obrigou a pandemia Covid 19, nos obrigou a esforços redobrados.
“Mesmo sendo Domingo, isto mal nunca me pode fazer” afiança-nos Carolina na sua imperturbável boa-disposição.
“Há um tempo que não posso ir ao ginásio mas estas caminhadas são tão boas ou melhores” acrescenta, enquanto galga as centenas de degraus naturais do Pico de Ana Ferreira, como se a sua ascensão se tratasse de um qualquer passeio alegre.
À Conquista do Pico de Ana Ferreira
O Pico de Ana Ferreira é uma das elevações contidas de Porto Santo, ilha formada há em redor de 14 milhões de anos. Prova-se excepcional pela sua configuração geológica, não tanto pelos 283 metros que constituem o zénite do ocidente da ilha.
Ditaram caprichos tensionais do arrefecimento do magma que moldou o Porto Santo que este monte se fizesse de colunas prismáticas quase perfeitas, orientadas sob diversos sentidos. Umas, surgem deitadas. Outras oblíquas. Outras ainda, com predomínio na base, verticais, ou apenas ligeiramente tombadas em jeito de Tubos de Órgão, como foram apelidadas.
Carolina vence os degraus de mugearite, um a um, dois a dois, entre arbustos e cactos, ainda e sempre a um ritmo de corredora de trilhos profissional. Mantermo-nos no encalço da cicerone esfalfa-nos.
Recuperamos a sua companhia, deixamos o coração recuperar da tortura a que o submetíamos. Em seguida, inteiramo-nos do contexto histórico peculiar por detrás do nome do monte.
Afiança um sector mais linguarudo da história que, malgrado o cognome de “O Príncipe Perfeito”, o Rei de Portugal e dos Algarves D. João II teve uma filha bastarda. Pressionada pela corte para não complicar a vida ao pai e ao reino, Ana Ferreira mudou-se para a ilha do Porto Santo. Mais que lá se instalar, dizem os portosantenses, que a senhora tornou a ilha um seu feudo.
Ora, logo a partir dos primeiros anos da sua povoação, Porto Santo foi alvejada pelos piratas berberes. Quando se via ameaçado, o povo escondia-se no Pico do Castelo, no extremo nordeste da ilha. E, diz-se ainda que, mesmo bastarda e degredada, Ana Ferreira não se misturava com a populaça.
Em vez, refugiava-se no monte que Carolina nos tinha feito conquistar, quem sabe se na gruta que, entretanto, nos revela e em que fica
mos um bom tempo a admirar o panorama emoldurado em forma elíptica da ilha, entregues a experiências acrobáticas-fotográficas.
A Descoberta Inaugural da ilha de Porto Santo
Divirjamos da conquista para a descoberta. Há que deixar tão claro quanto Carolina nos deixou a nós que o Porto Santo foi a primeira das ilhas ainda hoje portuguesas que os navegadores lusos encontraram.
Mesmo se, à imagem da Madeira, já aparecia em mapas desde, pelo menos 1339, Porto Santo foi achado, em 1418, por acidente durante uma expedição comandada por João Gonçalves Zarco, em que participaram ainda Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo.
O Infante Dom Henrique tinha instruído os navegadores a serviço da coroa a encontrarem novos territórios a ocidente de África. Enquanto orientavam o regresso pela Volta do Mar, uma tempestade fez os navios desviar-se da rota habitual.
Sem que nada o deixasse prever, a tempestade empurrou os barcos para uma enseada abrigada. A fortuna dupla de encontrarem o abrigo e um território que, ao contrário das Canárias, os rivais de Castela não tinham ainda reclamado, suscitou o baptismo religioso de Porto Santo.
Regressemos à nossa própria descoberta da ilha. No tempo que lhe dedicámos, deslumbramo-nos com incontáveis enseadas que o vulcanismo parece ter ditado inacessíveis, pelo menos por terra, uma das que mais nos impressiona, no fundo da falésia dos Morenos.
Outras, em redor do Furado do Norte e da Ponta da Canaveira, com vista para o Ilhéu de Ferro, aproximável por um trilho exíguo no cimo de penhascos vertiginosos que, do nada, Carolina investiga numa correria.
Espreitamos a enseada do Zimbralinho, essa, acessível, dona e senhora de um visual cru e escuro com muito de islandês. Mudamo-nos ainda para o noroeste da ilha onde descemos para a beira-mar rochosa e intrincada do Porto das Salemas.
Chegamos com a maré vazia, como é aconselhável.
Uma tabuleta bem hirta, espetada entre grandes seixos e ao lado de um exemplar único de espreguiçadeira amarela, deixa bem vincado que se trata de uma Praia Não Vigiada.
Àquela hora tardia, não só ninguém a vigia como, além de nós, ninguém a frequentava.
Deslumbrados pela sua excentricidade rochosa, cirandamos de poça em poça, estudamos salemas, lapas e búzios.
E contemplamos o rochedo longínquo do King Kong, há muito conformado com a solidão marinha a que se viu votado.
Vila Baleira e a Presença Incontornável de Cristóvão Colombo
Regressamos às imediações de Vila Baleira, apesar de acolher menos de 6.000 habitantes, a capital da ilha de Porto Santo.
Passeamos pela praia. Desviamos para as suas dunas d’ouro. Do cimo de uma delas, localizamos os vinhedos de caracol espraiados sobre o solo arenoso, entre sebes de muros de crochet, caniços e arbustos.
Admiramos a beleza daqueles vinhedos quase de brincar mas que, todos os anos, renovam o vinho peculiar de Porto Santo, apurado nos seis séculos do povoamento sempre desafiante da ilha.
Das dunas e seus vinhedos, embrenhamo-nos nas ruelas de Vila Baleira. Numa delas, esbarramos com a casa em que Cristóvão Colombo, desde cedo, bem relacionado com a corte e com nobres portugueses, se dignou a viver na cidade.
Ditaram certas circunstâncias que, na sequência da descoberta da ilha, Bartolomeu Perestrelo fosse indigitado o primeiro Capitão-Donatário de Porto Santo, em 1445.
Como determinaram outras que, em 1479, três anos após se ter instalado em Lisboa, o navegador genovês viesse a casar em Vila Baleira com Filipa Moniz Perestrelo, filha de Bartolomeu Perestrelo e neta de Filippo Pallastrelli, um nobre de origem italiana que, após se mudar para Lisboa e viver no Porto, viu o apelido aportuguesado.
A Ligação Matrimonial de Colombo aos Perestrelo, Família Pioneira de Porto Santo
Até dois anos antes do casamento, Filipa Perestrelo mantinha-se comendadora do Mosteiro de Santos, em Lisboa, um mosteiro exclusivo da alta nobreza, frequentado pelo rei D. João II e por Cristóvão Colombo que lá costumava ir à missa. Estima-se que entre repetidas conversas e convívios com Filipa Perestrelo, veio a resultar o agendamento da boda, conveniente aos planos de vida de ambos.
Em 1478, Colombo conseguira uma posição no negócio de exportação do açúcar produzido na Madeira, estima-se que de Paolo di Negro, um negociante italiano.
Por essa altura, Colombo ambicionava já tornar-se um descobridor reputado. Filipa Perestrelo, abrir-lhe-ia caminho à influência e conhecimento náutico do pai. Alguns historiadores afiançam, inclusive, que a sogra de Colombo lhe passou os mapas e documentos de cartografia de Bartolomeu Perestrelo.
Terá sido no Porto Santo e na Madeira que Colombo gizou boa parte do projecto de chegar às Índias pelo Ocidente, projecto que a Coroa Portuguesa, entretanto, recusou apoiar.
Cristóvão Colombo acabou por desvendar as Américas para o Velho Mundo, em Outubro de 1492, doze ou treze anos depois do casamento em Lisboa.
Da Subsistência Desafiante, à Prosperidade Sobretudo Turística
No meio milénio e pouco que decorreu, os colonos intrépidos de Porto Santo tudo fizeram para vencer as adversidades, sobretudo as secas que se repetiam, agravadas pelo desmatamento intensivo, necessário à lenha e à construção de tudo um pouco.
E pela reprodução descontrolada dos coelhos que vemos saltitar em toda a ilha, diz-se que descendentes de um único par de roedores libertado por Bartolomeu Perestrelo, consciente de que seria difícil atrair e manter povoadores se estes tivessem que subsistir apenas da pesca, da captura de aves e dos caracóis prolíficos da ilha.
Melhor ou pior, com o tempo, os Profetas – como são também chamados os portosantenses – asseguraram a sua vida na ilha e aperfeiçoaram meios fascinantes e hoje famosos do que começou como mera subsistência.
É o caso da arquitectura das Casas de Salão e das matamorras em que se abrigavam dos piratas. E, num âmbito gastronómico, do vinho, das papas de milho e do milho frito, também do bolo do caco que Carolina Freitas e os portosantenses em geral, defendem com unhas e dentes ter sido criado no Porto Santo, não na Madeira.
Hoje, o Porto Santo oferece aterragens bem mais suaves que a sua vizinha e memoráveis retiros atlânticos. Regressaremos o quanto antes.
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