É sábado. No final boreal de Junho, a tarde passeia-se com a noite, ambas borrifadas por uma chuva miúda que, caída de nuvens baixas e escuras, nos deixam confusos quanto a quantas vai o dia.
Vínhamos de uma boa meia-hora a apreciar e a fotografar o casario, o porto e o cenário que envolve Tórshavn, de uma meia encosta da montanha que a encerra a noroeste, a Húsareyn.
Dali, das imediações do hotel Foroyar que nos acolhia, a cidade estendia-se pela encosta verdejante abaixo, num salpicado de telhados negros e fachadas de todas as cores em que se encaixava o reduto murado do porto.
O canal de mar azulão de Nólsoyarfjordur separava a capital de Nólsoy, uma ilha alongada que em tempos, se terá libertado de Streymoy, aquela que explorávamos, a maior das dezoito que formam o arquipélago das Faroé.
Fartamo-nos da contemplação das alturas. Ladeira após ladeira, Descemos apontados ao coração urbano de Tórshavn. Assim que chegamos à entrada da rua pedestre Niels Finsens Gota, a urbe que, de longe, nos parecia um cenário subárctico anestesiante, estremecia de vida.
O Festival de Música Ébrio e Escuro de Voxbotn
O Voxbotn, um festival de música predilecto dos jovens das Faroe, desenrolava-se. Uma multidão trajada de negro, alourada e, em boa parte, embriagada partilhava gritos, abraços e outras expressões de euforia que destoavam da tranquilidade habitual das Faroé e da cidade.
Entusiasmava-os a evasão cerimonial do evento. E o ritmo de rap semi-metálico dos Swangah Dangah, um duo da casa, de quase todos se orgulhavam, como estandarte contemporâneo, irreverente da nação faroense, súbdita da monarquia dinamarquesa, se bem que, desde 1948, autónoma e auto-governada.
O hino das ilhas Faroé intitula-se “Tú alfagra land mítt”, algo como “Tu Minha Terra Bela”. Os faroeses sabem bem o quão especial é o seu arquipélago, lugar de cenários surreais como o Sorvagsvatn de Vagar como estão conscientes do protagonismo histórico que Tórshavn preserva desde os tempos da remota fundação.
Noutras ocasiões, com o Voxbotn já encerrado, em dias solarengos, exploramos o âmago da capital de uma ponta à outra: a velha catedral – a segunda igreja mais antiga do arquipélago – e a rua Bryggiubakki por ela abençoada. Abaixo, a marginal Undir Bryggjubakka.
E a separá-las, uma sequência de prédios de madeira de três andares e águas furtadas de frentes alinhadas pela marina Vestaravág, a metade oeste do porto, quase sempre repleta de veleiros, lanchas e outras embarcações de menor porte.
Com a intempérie já ao largo, encontramos tudo espelhado nas mesmas cores e na perfeição sobre a água escura, gélida e imóvel daquele reduto do norte do Atlântico do Norte.
Caminhada até à Ponta sem Saída de Skansapakkhusid
Prosseguimos ao longo da Undir Bryggjubakka. Chegados ao extremo, encontramos a ponta de Tinganes, a “ponta do parlamento” de Tórshavn e a génese da nacionalidade das Faroé, decorrente de democracias viquingues ancestrais, como a de Thingvelir.
Hoje, destaca-se do resto da cidade pela uniformidade branca (nas bases) vermelha (acima, até aos telhados) e verde (nos telhados) dos seus edifícios seculares.
Na dianteira do conjunto arquitectónico, sobre uma laje de rocha proeminente, uma bandeira ondulante impinge a quem chega a intensa faroesidade do lugar.
Os primeiros habitantes das Faroes até poderão ter sido celtas provenientes da Irlanda ou da Escócia, eremitas dessas paragens, assim o afiançou o monge irlandês Dicuil na sua obra De mensura orbis terrae. Sabe-se, todavia, que por volta do século IX, os viquingues chegaram e colonizaram boa parte do arquipélago.
Era norma, entre os viquingues fundar o Parlamento da colónia num sítio inabitado, de maneira a garantir a sua neutralidade política.
Quando o estabeleceram em Tinganes, em 850 d.C., ergueram uma das assembleias (Ting) mais antigas à face da Terra, ainda mais antiga que a da Islândia (Thingvellir), essa datada de 930 d.C.. E ergueram ainda a base política da evolução de Thórshavn.
O Rei Olavo, a Cristianização das Ilhas Faroé e o Declínio Viquingue
Por volta de 1035, a era de descoberta e conquista viquingue chegou ao seu término, ditado pela Cristianização imposta pelo rei Olavo que, nas Faroés, deu à costa em Kirkjubour, pelo abandono forçado da colónia de Vinlândia – no actual litoral leste do Canadá (Terra Nova).
E por derrotas militares retumbantes, as das batalhas de Stiklestad em que Olavo pereceu e outras em solo britânico, a de Stamford Bridge e a de Hastings.
Em Tórshavn, o ting de Tinganes deu lugar a um mercado casual que se desenvolveu até que, em 1271, a Coroa Norueguesa a tornou num entreposto comercial importante que comerciava em permanência com Bergen, na costa ocidental da Noruega.
Mesmo assim, o desenvolvimento da remota Tórshavn provou-se lento. Na viragem para o século XVII, contavam-se apenas cento e um habitantes na povoação.
Eram famílias de agricultores, seus servos, encarregados do entreposto comercial, oficiais governamentais e dezenas de trabalhadores de outras partes que, sem terras, afluíam à cidade esperançados em encontrar trabalho.
Tórshavn: das Tragédias à Prosperidade
A vida em Tórshavn melhorava a olhos vistos mas calamidades imprevistas travaram o progresso.
Em 1673, Thor, o deus da guerra e do trovão que inspira o nome da cidade resolveu fazer das suas. Sem se saber muito bem como, um paiol repleto de pólvora explodiu e fez alastrar um incêndio que arrasou muitas das casas e edifícios até então erguidos.
Já sob a Coroa Dinamarquesa, em 1709, o entreposto comercial de Tórshavn passou a servir um monopólio real com base em Copenhaga.
Fruto dessa benesse, a povoação abrigava já trezentos habitantes mas, uma epidemia de varíola assolou-a. Terão sobrevivido menos de cinquenta habitantes.
Não obstante, o estatuto de porto do Monopólio Real atraiu novos moradores e comerciantes.
Durante o século XVIII, Tórshavn recuperou a bom ritmo.
Ao ponto de se tornar uma cidade nórdica digna desse nome, com os seus armazéns a transbordar de bens que, a meio do século, podiam já ser comerciados com todos os portos disponíveis e viáveis, não só com os pré-definidos pela monarquia dinamarquesa.
Com o tempo e a consolidação da capital até aos seus 21.200 habitantes de hoje – um terço do das ilhas Faroé – a península administrativa de Tinganes evoluiu.
Até se tornar a unidade urbanística actual, aquela porque, continuámos a cirandar, num absoluto deslumbre histórico.
Do nada, três rapazes amigos, vestidos de negro como dita a moda jovem da cidade, irrompem pela pequena península oposta à ocupada pela bandeira faroense, com as proas dos barcos do estaleiro local e o prateado contraluz do mar em fundo.
Na direcção oposta, a bem iluminada, duas amigas tagarelam e põem os níveis de vitamina D em ordem, num banco instalado contra o fundo de pedra de um dos edifícios estatais.
Subimos para o cimo urbanizado do promontório. Cruzamos um pequeno túnel, internamo-nos no complexo de edifícios, alguns deles com mais de quinhentos anos.
Sem pressas, inteiramo-nos da sua configuração e funções. E sentimos a vida pacata do lugar fluir arejada pela brisa marinha.
Tinganes, o Âmago Político e Histórico de Tórshavn
O edifício no extremo absoluto da península de Skansapakkhusid, mais exposto ao mar e às intempéries foi, em tempos, o velho forte de Skansapakkasini. E é, hoje, o Lögtingid, o edifício principal do governo faroês, representado em termos gráficos por um carneiro de língua de fora.
Para o interior, já com telhados típicos e pitorescos de erva, sucedem-se o velho Portugalid, uma antiga prisão e casa do seu guarda. Nas imediações, estão o Munkastovan, um mosteiro em que se realizaram missas, e os adjacentes Leigubudin, um armazém real.
O movimento humano é ténue por estes lados. Passam dois homens, um de fato e gravata, coisa incomum na cidade, pelo que estimamos que se dirijam ao Lögtinget (Logting). Cruzamo-nos ainda com alguns visitantes dinamarqueses de férias. Quando o Reynagardur fica para trás, finda-se a uniformidade do vermelho e verde.
Ali mesmo, encaixada entre o muro branco e a sua casa negra de telhado de turfa e erva e de encantar, uma senhora trata do seu jardim térreo.
Prosseguimos para a base de Skansapakkhusid, por becos e vielas. Sem que o esperássemos, reencontramos a catedral. Antes de regressarmos à Undir Bryggjubakka e à pedestre Niels Finsens Gota, damos uma derradeira olhadela no sector oriental do porto, o Eystaravág.
Do lado de lá, uma frota de jovens descendentes de viquingues coloca barcos a remos no mar, zarpa península abaixo, contorna a ponta rochosa e a bandeira da sua nação e entrega-se a uma navegação lúdica mas comprometida por parte da rota do ferry que liga Tórshavn à ilha de Nólsoy.
A Lenda de Barbara, o “Barbara Fish House” e Outras Experiências Gastronómicas
No entretanto, longe de escurecido, o dia chegava à hora convencionada nestas paragens boreais para o jantar. Com mesa marcada, retrocedemos para o bairrinho antigo na base de Skansapakkhusid, disposto em redor de uma artéria fulcral, a Gongin.
Damos entrada no restaurante “Barbara Fish House”, instalado noutra das várias casas tradicionais com telhado de turfa desta zona.
Mais que nos sentarmos para uma experiência gastronómica, tínhamos inaugurado uma nova incursão ao passado das ilhas Faroé.
De tal maneira emblemática que Jorgen-Frantz Jacobsen, um escritor faroense fez da narrativa que inspirou o baptismo do restaurante uma das suas obras mais famosas”.
O enredo do romance tem lugar no século XVIII. Recupera “Beinta e Peder Arrheboe” uma das Faroé famosa.
Barbara é viúva de dois párocos protestantes, vista por boa parte da comunidade como responsável pelas suas mortes. Quando o navio “Fortuna” atraca, tráz a bordo um novo pároco chamado Poul. Já desembarcado, Poul é avisado sobre o passado de Barbara. Mesmo assim, apaixona-se pela mulher.
Barbara interessa-se por Poul mas cede à atração por outros homens, marinheiros chegados em barcos vindos de longe. Barbara e Poul casam mas, Barbara apaixona-se por Andreas e parte com ele. Andreas vê-se confrontado por Poul e deixa-se persuadir a partir para Copenhaga sem Barbara.
A história termina com o desespero de Barbara a tentar alcançar o “Fortuna”, em vão, já após o navio ter zarpado rumo à capital dinamarquesa.
Entre repastos noutros restaurantes, no “Barbara Fish House”, comemos uma Fiskasuppa, Torskur e Jákupsskeljar: sopa de peixe, com bacalhau e escalopes. Também um Oda, um mexilhão-cavalo em escabeche.
O menu dos vinhos contava com vinhos espanhóis, franceses e alguns portugueses. Pedimos um Alvarinho que o empregado de mesa, esmerado, mas sem poder fazer milagres no que diz respeito ao português, nos apresenta como proveniente de Melgago, em vez de Melgaço.
Rimo-nos um pouquinho entre nós. Apenas o suficiente para descontraímos do frenesim fotográfico faroês que os dias sem fim do estivo árctico intensificava.
Quase duas horas e meia depois, com o lento lusco-fusco a começar a azular Tórshavn e todo o sul da ilha de Streymoy, recolhemos ao abrigo quase no cimo da montanha do Foroyar.
Vários dias, várias ilhas das Faroés vizinhas de Streymoy se seguiriam. Caso de Kalsoy, com o seu remoto farol de Kallur.