Munido de várias pens repletas de ficheiros MP3, além de motorista, Frank desempenhava o papel de DJ da viatura.
Fazia rodar temas famosos da música ganesa, uns atrás dos outros. Passado, algum tempo, os mesmos, uns atrás dos outros, outra vez.
De tal maneira repetidos que, mesmo tendo-os ouvido, naquela viagem, pela primeira vez, começavam a gerar em nós alguma familiaridade.
Durante boa parte do tempo, limitamo-nos a escutá-los como mera música, mesmo se alguns tinham letras demasiado obscenas para o que estávamos habituados.
Com o desenrolar do tal repetir, as melodias mais orelhudas conquistaram-nos, uma delas em particular, de que Frank não conhecia nem o autor nem o nome.
Tentamos descobri-los com recurso à aplicação Shazam. Em vão. A App não parecia possuir, na sua base de dados, uma secção ganesa à altura, pelo que nos resignamos.
Assim mesmo, resignados, chegamos a Ho, a capital da região ganesa de Volta.
A tempo de assistirmos a um dos festivais étnicos mais importantes da região, o Agbamevo, também chamado de Kente, por celebrar a profusão e exuberância deste tipo de tecido tradicional do Gana, durante o evento, acompanhado por ouro em doses industriais. O Agbamevo veio a provar-se de tal maneira exuberante que lhe dedicaremos, em breve, todo um artigo.
Avançamos, assim, na narrativa ganesa, até à manhã seguinte.
Já em cima das dez da manhã, tarde e más horas, saímos para a estrada. Acompanha-nos, agora, Nii Tawiah, encarregue de nos mostrar o Volta para norte da capital Ho.
Mal o vimos e ouvimos, temos a sensação de estarmos perante um sósia do actor norte-americano Chris Rock.
Sucesso na Demanda do DanceHall do Gana
Voltamos a instalar-nos no jipe. Frank reactiva o modo musical. Não tarda, o sortido de MP3 prenda-nos com um dos tais temas que nos havia deixado intrigado. Conscientes de que Nii pertencia a uma geração acima da de Frank, perguntamos-lhe se sabia do que se tratava.
“O quê, nem o Frank, nem o Kojo nem o Yosi vos diziam o que era isto?” responde-nos Nii espantado pela alienação musical da comitiva a bordo.
“Este é o Vybrant Faya (nome artístico de Emmanuel Kojo Quayson, uma das novas estrelas do DanceHall do Gana. A música chama-se “Mampi”. O Vybrant Faya é um dos mais famosos do Shatta Movement Family que é liderado pelo Shatta Wale.”
Nii deslumbra-nos. Por fim, tínhamos quem nos formasse e informasse sobre a cena musical de Acra, do Gana em geral. Durante o resto da viagem, sobretudo após o regresso a casa, descobrimos mais autores e outros temas de Dancehall ganeses meritórios.
E vídeos, quase todos algo mal-amanhados que, mesmo sem os devidos recursos, aspiravam ao glamour, complexidade e promiscuidade visual próprias dos canais dos Estados Unidos, como o MTV e o mais recente Trace.
Mais tarde, regressados a Portugal, inteirámo-nos que Vybrant Faya tinha falecido cerca de um mês após termos ouvido o contagiante “Mampi” pela primeira vez.
Apesar da sua juventude, forma física e irreverência, não resistiu ao atropelo de um motociclista que circulava a alta velocidade numa das estradas mais frenéticas da capital Acra, a Tema Road.
A Caminho da Remota Amedzofe
Nessa manhã, a milhas de podermos imaginar tal tragédia, deixamos Ho apontados a uma tal de vila de Amedzofe, disposta no sopé de uma das elevações excêntricas do Gana, o monte Gemi.
Uma hora depois, damos entrada na povoação, um aglomerado de casas de tons pastel com telhados avermelhados de zinco ou outra chapa, assim descortinámos o panorama de um ponto mais alto.
A diante e acima desse casario, destacava-se um grande morro verdejante com forma de mama. Uma névoa densa, entre o cinzento e o azulado, encerrava Amedzofe como uma estufa e parecia afagar o cimo do morro.
Os cicerones ganeses conduzem-nos às instalações do turismo local, quartel-general da ambição de tornar o Monte Gemi incontornável no turismo ganês, para começar.
Lá nos apresentam Satoshi Okubo, um jovem japonês destacado por uma organização de cooperação e voluntariado no estrangeiro.
Satoshi fala-nos da sua experiência de vida em Amedzofe, de como se tinha integrado muito mais depressa do que esperava.
De como achava que as pessoas de lá mereciam uma vida mais generosa que a que tinham, a razão porque tinham convencido a GTA (Ghana Tourism Authority) a lá levarem jornalistas de viagens estrangeiros.
O seu repto estimula-nos a fotografarmos a beleza natural e a alma daquele lugar.
Saímos numa pequena comitiva. Começamos por caminhar entre o casario. Até que Nii atalha para a base do monte, para o trilho que conduzia ao seu cimo de mamilo e aos prados generosos e ventosos que atrás se prolongavam até perder de vista.
A Conquista Fácil do Monte Gemi
O trilho torna-se íngreme e perde-se na erva que a névoa fazia crescer em permanência. Um dos seus raros meandros revela-nos um crucifixo destacado do verde-amarelado.
A cruz marcava o zénite do morro, 700 metros acima do nível do mar, menos de 100 metros abaixo da elevação suprema do Gana.
Quando o atingem, mal preparados para tais esforços, Kojo e Yosi ocupam-no, um de cada lado, em modo de recuperação e contemplação sincronizadas. Nós, fotografamo-los aos dois no seu poleiro.
Ao passarmos para a parte de trás do cimo, surpreende-nos uma família dispersa ao longo do limiar marcado pela névoa, entusiasmada com as selfies e fotos de grupo especiais que ali faziam, com a névoa e a povoação vizinha de Gbadzeme em fundo.
Naquele cume, inteiramo-nos ainda das curiosidades coloniais do lugar.
A forma como os alemães o colonizaram, no final do século XIX, em redor de uma Escola Missionária, diz-se que porque era um dos poucos da sua Togolândia que lhes concedia um clima fresco comparável ao da Alemanha.
A Génese Germânica do Baptismo do Monte
Em 1939, vinte anos após a derrota dos germânicos na 1ª Guerra Mundial e a perda da Togolândia, dividida entre franceses e britânicos, os Missionários Alemães foram autorizados a regressar e retomar o seu trabalho de evangelização.
Nessa ocasião, ergueram uma cruz no cimo do monte que ficou conhecida como Gayito. Uma vez que as suas instituições coloniais eram geridas por um tal de German Evangelical Missions Institute e porque esta sigla foi inscrita na base da cruz, com o tempo, o Monte ficou conhecido como GEMI.
O Gana e o Togo, este último país que, não fosse a névoa, avistaríamos também do cimo do monte só se tornaram independentes em 1957 e 1960, dos britânicos e dos franceses.
Com a névoa a descer a olhos vistos e uma chuva miudinha a instalar-se Nii e Kojo antecipam a partida ainda mais para norte, rumo às Wli Falls, imperdíveis, nem que fosse porque, com 80 metros, eram as mais longas do Gana e, assim nos asseguravam, da África Ocidental.
Volta Acima, em Busca das Quedas d’Água de Wli
Cumprimos quase todo o percurso por uma estrada de terra vermelha esburacada. Por volta das 15h, instalamo-nos num restaurante-esplanada à beira da estrada, a uns poucos quilómetros do território togolês.
O almoço tardio dá azo a conversas intrincadas que, a determinada altura, envolvem já a escravatura de que a região da Costa do Ouro se viu vítima, e o papel dos chefes tribais africanos e dos europeus, incluindo os portugueses. Nuvens escuras como breu, que aparecem, sem aviso, do lado de lá da fronteira, interrompem o debate.
Atalhamos o repasto. Saímos disparados rumo ao início do trilho de selva que conduzia às quedas de água. Percorremo-lo em menos que os 40 minutos, esperados, lado a lado com um rio que, a espaços, transbordava sem apelo.
Por fim, saímos da floresta cerrada para a clareira que precedia a falésia da queda d’água. Uma mistura de chuva e dos borrifos do caudal vertical que o vento soprava na nossa direcção molhou-nos em três tempos. Manteve-nos encharcados por quase uma hora.
Molhados e com frio inesperado, lutamos para conseguir fotografar as Wli Falls naquele seu cenário fronteiriço grandioso, contra as inesgotáveis gotas e goticulas que nos manchavam as objectivas.
Retirada Forçada por uma Intempérie Chegada do Togo
No entretanto quase anfíbio, o Togo reforçou o batalhão de nuvens que enviava sobre o Gana. A bátega tornou-se tal que nos forçou a correr em retirada para o carro, receosos que uma enxurrada nos apanhasse nas margens ora enlameadas ora pantanosas do rio.
Regressamos a salvo. A chuva só deu de si à entrada de Ho.
De volta ao hotel, tomamos duches revigorantes. Jantamos sopas ainda mais picantes que o picante médio dos dias anteriores, caldos ganeses avermelhados que mais que a suar, nos deixaram a hiperventilar.
Na manhã seguinte, desgastados das comoções meteorológicas da véspera, dormimos em demasia. Quando saímos, Frank, Kojo e Yosi conduzem-nos a um lodge resplandecente da zona, o Senchi Royal, de Akwamu, recém-erguido sobre a margem do rio Volta.
Senchi, a Garganta de Akwamu e o Majestoso Rio Volta
Fartos das nossas vontades de exploração, Kojo e Yosi lá se instalam e tudo fazem para passar a tarde a beber cocktails.
Inconformados, nós, exigimos a volta de barco pelo Volta que estava programada. Kojo e Yosi cedem. Conscientes de que o faríamos a bordo de uma lancha hiperluxuosa, juntam-se a nós.
Até perceberem que, no meio da confusão do programa e desprograma, tínhamos também reconfirmado uma caminhada complementar
Intimidado pelo esforço físico, o duo inseparável da GTA volta ao hotel e, assim estimamos, aos cocktails. Nós, seguimos um guia que o hotel nos havia conseguido até a um cimo da encosta da Garganta de Akwamu.
Finalizamos o percurso uma vez mais ensopados, em vez de pela chuva, pela humidade e condensação agravadas pela vegetação acima do rio.
Assim mesmo, feitos em água suada, admiramos o grande rio Volta e a cidade de Atimpoku, com o seu casario disposto a norte da ponte de Adomi.
No regresso ao nível do rio, visitamos o palácio Akwamufie (Bogyawe), trono actual de Odeneho Kwafo Akoto III, rei do estado de Akwamu, um dos muitos domínios tradicionais semi-tribais que, malgrado o seu estatuto de nação, subsistem no Gana.
Como subsistem no palácio os mais diversos testemunhos da grandiosidade do povo Akwamu, a começar pela chave do castelo de Christianborg, que os Akwamu conquistaram, em 1693, aos colonos também eles esclavagistas do reino Dano-Norueguês. Já após o período áureo português consolidado em redor do Forte de Elmina.
Por inverosímil que possa parecer, reza a história que Nana Asamani, rei Akwamu de então, vendeu o castelo de volta aos Dinamarqueses-Noruegueses por 12kg de ouro.
Conservou, no entanto, as chaves do castelo. Hoje, são uma das principais atracções do palácio Bogyawe.
De regresso ao Senchi Hotel, Kojo e Yosi, queixaram-se que o nosso atraso nos faria apanhar o pior trânsito de Acra.
De facto, chegámos tarde. E a más horas.