A manhã, tínhamo-la passado quase toda na ilha vizinha de Bolshoi Zayatski, entre “babylons”, espirais místicas que se crê legadas por habitantes do Neolítico.
Regressados a Bolshoi Solovetsky, voltamos a encontrá-las.
Caminhávamos na direcção do Mar Branco quando nos cruzamos como jovem Dima, vindo de outro lado qualquer, a pedalar sobre a sua bicicleta.
Dima e o nosso cicerone russo, Alexey Kravchenko, trocam algumas palavras. Dima desmonta do velocípede. A caminhada passa a quatro.
Minutos depois, damos com o oeste do mar, liso como um lago, escurecido e prensado por um tecto vasto e denso de nuvens. Antecedia-o uma nova e inesperada “babylon”, emulada das do núcleo central de Zayatski.
As “Babylons” e o Ocaso Fenomenal de Solovetsky
Examinamo-la os quatro. Damo-nos ao trabalho de a percorrer, da orla ao âmago, naquele caso, feito montículo. No momento em que o tocamos, em jeito de milagre cósmico, brota uma luz dourada de pouco acima do horizonte.
Não tarda poente, o sol ocupa toda uma faixa rasante que as nuvens se haviam esquecido de cobrir.
O seu reflexo forma um raio marinho oblíquo, uma espécie de indicador natural que, por alguma intrigante razão, nos aponta e à “babylon”.
Admiramos o fenómeno numa comunhão de espanto e de amizade, intensificada pela presença de Dima, dono de uma aura e de uma intimidade de trato, raras entre os russos.
O sol some-se. Primeiro para trás do limiar de nuvens. Logo, para baixo do Mar Branco e do horizonte.
Exibia os seus derradeiros laivos quando um vizinho de casaco camuflado surge do nada e mete conversa com Alexey e Dima, afinal, um monólogo aturado e arrastado que o duo escuta com paciência e que Alexey nos traduz em sussurro: “está a dizer que toda a gente que aqui vem acaba por desenhar o seu próprio labirinto. Pela maneira de falar, eu acho que ele tem um atraso”.
Se assim fosse, ao mesmo tempo, havia muito de filosófico nas palavras do interlocutor que faz questão de as ilustrar.
Ajoelha-se sobre uma zona ervada da margem, próxima de uma pilha de pedras tresmalhadas da “babylon”. Inspirado pela atenção que lhe prestávamos, o rapaz põe mãos à obra.
Em vez de uma “babylon”, desenha o que nos parece um gato sorridente mas que poderia ser uma mera face de pessoa, tão tosca como a matéria-prima o permitia.
Mesmo em modo de câmara-lenta boreal, escurece. Como escurece, arrefece.
O Chá Alcoolizado na casa de Dima de Solovetsky
Dima convida-nos para um chá. Aceitamos de bom grado, conscientes de que quando um russo convida alguém para chá, dificilmente se refere a apenas chá.
Seguimo-lo até à casa em que se alojava, segundo nos explica, dos pais de uma amiga. Um lar desarrumado e degradado que há muito não via limpeza, nenhum dos factos incomodativos, ou prejudiciais que fosse, ao convívio que dele esperávamos.
Dima aquece água e, de facto, serve-nos chá. No processo de o fazer, com ajuda de Alexey e de Yaroslav – um outro amigo da ilha que, entretanto, convidara – montam uma tradicional (ou nem tanto) mesa russa, enriquecida com pão, queijo e manteiga, latas de leite condensado, picles, caules de cebolinho e, claro está, vodka.
Uma garrafa e meia, para o caso de uma não chegar.
Em meros dois ou três copos, a tagarelice e a festa animam.
Dima vai buscar um velho sarangi que tinha mandado vir pela Net, por 600 dólares. Adorna a noite com acordes que lhe fazem de banda sonora oriental.
Provavelmente graças à estratégia híperlipídica a que os russos recorrem quando bebem vodka, apesar de bebermos e brindarmos vezes conta, nunca atingimos o sempre temido estado de caixão para a cova.
Satisfeito por nos ver felizes, Dima faz questão de o confirmar. “Temos aqui uma boa mesa, não temos?” Alexey, confirma-o de imediato, com repto de um novo brinde.
Explica-nos o significado que os russos dão à expressão. Quando o faz, gera em nós aprovações efusivas e, para mal dos nossos pecados, novo brinde comemorativo.
Yaroslav por sua vez, pouco ou nada fala de inglês. Limita-se a comentar, em russo, aqui e ali, eternercido pelo desenfrear alcoólico da farra.
Dima e Yaroslav: inesperados Convivas do Outono Russo
Dima nascera nas imediações boreais de Archangelsk. À data, morava na São Petersburgo de Fiodor Dostoievski e Alexander Pushkin. Voltava à sua região sempre que podia.
Dima destoava dos preconceitos com que nos habituamos a ver os russos. Pagava por isso. Objector de consciência do serviço militar russo, teve vedado o uso de passaporte e, como tal, não pode sair do país.
Malgrado o seu parco inglês, também de Yaroslav desvendamos um pouco.
Baptizado com o nome do Grande Príncipe de Kiev, entre os 40 e os 50 anos de idade, o amigo de Dima vivia em Solovetsky fazia quase quatro. Parte desse tempo, dedicou-o a construir um barco de madeira em que já tínhamos reparado no porto da povoação.
Yaroslav cumpriu o serviço militar. “O primeiro ano, odiei. O segundo já foi bem diferente. Viajei por toda a Rússia e sempre com o governo a pagar. Não me podia queixar.”
Yaroslav dedicou um dos brindes inaugurais “à Ibéria e à Sibéria”.
Há muito que deambulávamos mais para os lados da segunda. Recebidos e entretidos por almas como aquelas, pouco ou nada nos lembrávamos de casa.
Alexey Kravcheko, por sua vez. Esquecia-se da que havíamos alugado na povoação e dos vizinhos Andrey Ignatiev e Alexey Sidnev que nos tinham convidado para jantar.
Mesmo ainda atordoados do lanche, não podíamos recusar.
Do Lanche para o Jantar. Tudo Regado a Vodka
Meia-hora depois, damos connosco uma vez mais à mesa do duo de geólogos, deliciados com os petiscos que Andrey preparara. Entregues a mais brindes de vodka.
Por essa altura, vivíamos um deslumbre absoluto por Solovetsky, partilhado, aliás, por Alexey Kravchenko que há muito sentia fascínio pelo arquipélago e que lá nos tinha levado.
De tal maneira, que o cicerone anuiu a tentarmos mudar os bilhetes de barco para Kem, para uns dias mais tarde.
O plano provou-se impossível. Comovidos pela nossa desilusão, Alexey e Andrey oferecem-se para nos conduzir pelo melhor da ilha. O único senão: logo de manhã cedo. Por essa altura, já duvidámos que sobrevivêssemos àquela arrebatadora paixão pela Rússia setentrional.
Dormimos mais para lá do que para cá. Despertamos às 8h10 com Alexey Sidnev a bater à porta, já fresco que nem uma alface. Como o conseguia após tanto vodka?
Como o faziam boa parte dos russos? Ultrapassava-nos. De qualquer maneira, a urgência estava em nos arrastarmos para fora da cama, e em garantirmos o mesmo prodígio de Alexey Kravchenko.
Com muito sofrimento, sobre as nove, estávamos prontos para sair.
O Outono Exuberante dos Arredores de Solovetsky
Seguimos o duo de geólogos até à carrinha UAZ – Ulyanovskyi Avtomobilnyi Zavod – verde-tropa em que se deslocavam. Andrey faz-nos instalar nos bancos laterais com um aviso carregado de dramatismo:
“Segurem-se bem com as mãos no tecto. Esta carripana tem uma das suspensões mais duras que alguma vez vão experimentar. Os Russos chamam-lhe cabra, por causa dos coices que dá. Acreditem ou não, já tivemos passageiros feridos.”
Andrey e Alexey certificam-se de que nos estamos a proteger. Logo, partem na direcção da Sekirnaya.
O percurso de 11km, envolto de lagos, ladeado por vegetação multicolor deixa-nos extasiados.
Incontáveis solavancos depois, chegamos ao cimo da elevação e, nas imediações, a uma plataforma panorâmica que revelava a taiga sem fim, com o seu verde já convertido aos mais distintos tons de fogo outonal.
Monumental, o cenário vegetal condena-nos a um frenesim fotográfico.
Agradecemos a Andrey e Alexey tanto quanto podemos. “Deixem lá isso. Respondem-nos.
A sério que é um grande prazer ter-vos cá. Vamos mas é tirar umas fotos, senão só temos dentro de casa.”
A Colina de Sekirnaya e o Passado Atroz de Solovetsky
Assim fazemos, abençoados pela igreja da Ascensão, erguida num dos lugares mais negros de Solovetsky.
Durante os tempos de opressão Gulag soviética, na área ocupada pelo templo, e em redor, foram levadas a cabo incontáveis torturas e execuções.
E enterros, feitos à pressa.
Em sepulturas comuns, nunca identificadas mas em que as autoridades ortodoxas colocaram pequenas cruzes que indicam o número de corpos em cada qual.
Na base da escadaria que leva à igreja, há uma outra cruz, essa, enorme.
Ergueram-na também os monges, em 1992, logo após o colapso da U.R.S.S., em memória de todas as vítimas do campo prisional Gulag de Solovki.
Andrey e Alexey tinham que regressar ao mosteiro onde inaugurariam as suas tarefas agrimensoras do dia. Nós, contávamos acompanhar uma procissão que os religiosos realizavam, aos Domingos, em redor do complexo. Em vão.
Findo o pino do Verão, com muitos monges ausentes, a cerimónia já tinha sido suspensa.
Em pleno Outono, Alexey Kravchenko temia que um provável mau tempo suspendesse as ligações de barco para Kem e nos víssemos retidos na ilha muito mais do que queríamos.
Nesse mesmo fim de tarde, despedimo-nos de Andrey e de Alexey.
Já embarcados, com o pequeno ferry a avançar de volta para a terra firme de Kem e da Mãe-Rússia, sussurramos um “até à vista” convicto na direcção de Solovetsky.