Estão instalados o lusco-fusco e as cores garridas da Strip de Las Vegas quando os repuxos do Bellagio se voltam a elevar.
Como a quadrilha de Danny Ocean em “Ocean’s Eleven”, uma multidão expectante deixa-se deslumbrar pelos movimentos graciosos da água.
A banda sonora, “Time to Say Goodbye” (“Con te partirò”) de Andréa Bocelli e Sara Brightman, confere ao espectáculo um retoque extra de solenidade e dramatiza um momento de requinte e esplendor que, apesar de repetido até à exaustão, é sempre concorrido.
A iluminação e os flashes, disparados vezes sem conta, geram um clarão interactivo que envolve o hotel e, por alguns minutos, relega para segundo plano a restante cidade.
Terminado o show, a assistência desfaz-se aos poucos e regressa à realidade imprevisível de Vegas.
Do lado oposto da avenida, um exército de mexicanos dispostos ao longo do passeio desafia o glamour envolvente com roupas andrajosas e olhares de miséria sem solução: “ … girls, girls, girls… “ sugerem aos transeuntes enquanto distribuem pequenos flyers de mulheres de sonho, nuas, que a promoção oferece a partir de 50 dólares.
Os flyers rejeitados acumulam-se no chão. Formam um tapete de lascívia que os locais já se habituaram a pisar. Não é motivo para grandes escândalos, afinal “What Happens in Vegas, Stays in Vegas”.
O Sonho de Ben “Bugsy” Siegel que deu Origem à Cidade Surreal do Pecado
A fama libertina de Las Vegas vem de longe, da sua fundação em 1905, quando a concentração de casas de entretenimento adulto lhe granjeou o título de cidade do pecado e atraiu gente de todos os cantos do país e do estrangeiro.
O dinheiro, tantas vezes sujo mas fácil, o espírito de aventura que lhe era inerente fizeram deste oásis perdido na vastidão árida do Deserto do Mojave – a que os primeiros exploradores espanhóis chamaram Vegas (prados) – a maior urbe norte-americana fundada no século XX.
Hoje, apesar de ser apenas a 28º em termos de população (cerca de 560.000 habitantes), Las Vegas continua a ocupar um lugar à parte no imaginário da nação ianque e do mundo.
Tudo começou com um dos sonhos tresloucados de Ben “Bugsy” Siegel que ali arriscou a sua reputação e muito dinheiro ao abrir um casino esplendoroso de inspiração tropical a que chamou Flamingo. Passou por uma fase de desenvolvimento em volta da Fremont Street, hoje uma mini-amostra do que se tornou a Strip.
Pouco tempo depois, o Las Vegas foi introduzida a uma modernidade anunciada pela passagem do caminho de ferro que ligava Los Angeles a Salt Lake City.
Desenvolveu-se desenfreadamente graças a projectos de construção apoiados pelo governo federal e à legalização do jogo que permitiu ao estado do Nevada e a Las Vegas cruzar a Grande Depressão sem sobressaltos, acolher uma base da Força Aérea e uma das grandes auto-estradas oriundas do sul da Califórnia.
Com o advento da Guerra Fria, o Nevada recebeu ainda um dos mais activos test sites nucleares dos Estados Unidos. A determinada altura, as explosões estilhaçavam janelas dos casinos da Downtown todos os meses. A animação depressa foi incorporada no espírito “the show must go on”.
Várias Miss Mushroom Cloud oficiais promoveram as facetas atómicas do estado em campanhas turísticas radioactivas.
Todas as sextas, ou ainda antes, se algum feriado o conceder, as longas estradas de acesso à capital do jogo enchem-se de carros apressados por condutores ansiosos. São muitos milhões os viciados em apostas dos Estados Unidos.
O Jogo Pelo Jogo, a Fortuna, a Ruína, e as Luzes da Fama
Assim que as vidas o permitem, uma parte considerável conflui para as suas roletas, slot-machines e mesas de cartas favoritas. Ali, possuídos pela ganância, aprisionados nas salas cavernosas e fumarentas dos casinos, perdem a noção do tempo e do razoável.
Dos mais insignificantes aos sumptuosos – como o Wynn, o Bellagio, o Caesar Palace e o MGM -, os casinos decoram as suas paredes com imagens sugestivas dos ganhadores. Os jornais divulgam-nos, com pompa, dia após dia.
Os falidos, esses, surgem apenas nas listas de devedores dos bancos e das empresas de crédito, de procurados pela polícia e, em casos extremos de desespero, das morgues.
Existem ainda aqueles que jogam “dólar a dólar” para preencher um vazio existencial. E os que podem perder por pura diversão por, de tão ricos, serem quase imunes aos estragos.
Hollywood, Beverly Hills e a Mulholand Drive escondem-se logo ali ao lado, por detrás das encostas litorais da vizinha Califórnia. A viagem de jacto privado de LAX é tão curta que não chega para saborear uma garrafa de champanhe.
As estrelas aproveitam a proximidade. Desembarcam para ocupar lugares reservados ad eternum nas UltraLounges VIP dos casinos.
Algumas destas estrelas – actores/comediantes/cantores – alargam a sua órbita de fama à cidade. Assim que pisam os palcos mais prestigiantes de Vegas ou lá filmam, passam a dela fazer parte.
Assim aconteceu com Elvis, Frank Sinatra, Cher, Bette Middler, Celine Dion, Seinfeld ou o britânico Elton John, todos eles protagonistas de espectáculos concorrentes sempre esgotados.
Até o célebre vizinho canadiano Cirque du Soleil, de início familiar e alternativo, moveu mundos e fundos para responder ao recrutamento de várias corporações presentes em Vegas.
As suas produções locais – Mystere, O, Zumanity, Ka, The Beatles- Love, Believe e Viva Elvis – são exibidas em seis dos hotéis mais importantes da cidade. Tornaram-se, elas mesmas, de certa forma, corporativas.
Las Vegas: uma Recreação Tresloucada de Lugares Famosos do Mundo
Para compensar a falta de referências internacionais do Nevada, Las Vegas e, sobretudo a Strip, foram geradas com base em clonagens e franchises culturais internos e externos.
O próprio nome Strip foi tomado de empréstimo da Sunset Strip de Los Angeles. Com o passar do tempo, substituiu o original Arrowhead Highway.
Ao invés de aborrecerem, estes plágios arquitectónicos e conceptuais suscitaram enorme interesse num público em que predominavam os pouco viajados americanos.
Continuaram a ser produzidos, sempre em função da capacidade de entretenimento e facturação deste american playground.
A Strip tem actualmente 6.1 km, preenchidos na quase totalidade por edifícios e complexos de visuais dramáticos como o Mandalay Bay, que assinala a sua extremidade norte e o futurista Stratosphere que delimita a sul.
Entre ambos, impõem-se vários dos maiores casinos e resorts do planeta e 19 dos 25 maiores hotéis do mundo, por número de quartos.
Nos melhores anos, passam pela cidade quase 40 milhões de pessoas.
O Brilho da Cidade do Pecado, Sobretudo da Longa e Luminosa Strip
Para as impressionar, a iluminação dos edifícios e das ruas, em geral, é de tal forma potente que, vista do Espaço, a área metropolitana de Las Vegas revela-se a mais brilhante à face da Terra.
A Strip acolhe também as duas maiores empresas de jogo do Mundo à data da criação deste texto: a Harrah’s Entertainment e a MGM Mirage.
Como tributo à imagem da marca, esta última dá-se ao luxo de exibir ao público leões, tigres brancos e outros felinos, nas suas instalações megalómanas.
Estamos a quase 14.000 quilómetros de França. Ainda mais de Itália e do Egipto. Ainda assim, surgem em Las Vegas uma reconstituição de Paris que contempla os indispensáveis Arco do Triunfo, Campos Elísios e Torre Eiffel.
Destaca-se da Strip uma pirâmide de Luxor protegida por uma esfinge.
E a mini-Veneza do Venetian em que circulam gôndolas subtilmente movidas a motor, para compensar, conduzidas por gondoleiros trajados a rigor, alguns cantores de ópera.
Ao cruzarmos a avenida, a fantasia continua, desta vez, entre os piratas e corsários do Treasure Island. Prolonga-se pelo imaginário greco-romano do imperial Caesar.
Seja qual for o espaço, as instalações revelam-se requintadas e acolhedoras, refrescadas ou aquecidas por sistemas de ar condicionado poderosos que protegem os visitantes das temperaturas sufocantes do Verão, quando as máximas chegam facilmente aos quarenta graus.
E das gélidas do Inverno, que roçam os zero.
Para espanto geral, nos últimos anos, a concorrência desenfreada e o estado decadente da economia dos E.U.A. (que à data da criação deste texto) derretia o poder de compra dos norte-americanos) gerou diárias de hotéis e preços, de uma forma genérica, bastante acessíveis.
Principalmente de Domingo a Quinta, verdadeiras instituições como o Bellagio e o Stratosphere oferecem quartos e refeições divinais por valores em que custa a acreditar. São os japoneses, sempre abastados, e os europeus quem mais beneficiam e se surpreendem.
Elvis Presley, Celine Dion, Elton John, Seinfeld e Todos os Outros
Os passeios da Strip não fogem à esfera do espectáculo barato. Servem de sala a um sem número de imitadores, promotores e artistas tantas vezes empresários de si mesmos.
Elvis Presley está vivo em Las Vegas. Além de presente em determinadas capelas da Downtown, aparece multiplicado ao longo da Strip.
É raro o visitante que deixa a cidade sem uma foto sua abraçado a um King trajado a rigor.
Os sósias quase nunca cobram assim de caras mas apressam-se a sugerir: “A contribution would be just fine … one of ten or even … twenty if you don’t mind …”
Por cachês bem mais altos, de 1969 a 1976, Elvis Presley actuou em Las Vegas numa média de dois concertos por dia, (um durante a tarde e outro à meia-noite).
Dependendo da sua disposição, certos espectáculos foram mais curtos ou mais longos, mais ou menos vivos e contagiantes. Entre tanta actuação, contaram-se, claro está, alguns dos seus momentos inesquecíveis.
Vegas ficou-lhe eternamente agradecida.
Duas décadas antes, durante a febre de construção iniciada pelo Flamingo, foram outros os entertainers, só ligeiramente menos famosos.
Enquanto os magnatas apoiados pela máfia elevavam o esplendor da cidade ao nível dos últimos andares dos seus hotéis-casinos, chegavam novos grupos de dançarinas topless, de França, inclusive.
Por forma a credibilizar os palcos demasiado despidos foram então contratados nomes já famosos do showbizz norte-americano. Frank Sinatra, Liberace e Sammy Davis Jr, estiveram entre os pioneiros.
Nos dias que correm, os espectáculos diversificaram-se. Uns, resumem-se a experiências de Stand Up Comedy de sucesso, transpostas de outras partes do país, como o exótico Carrot Top, Terry Fator, David Spade ou o ocasional Seinfeld.
Outros, revelam-se mega-produções multi-disciplinares e tecnológicas. E se o Cirque du Soleil vinha a monopolizar este tipo de shows, a recente inauguração do elegantíssimo hotel-casino Wynn, implicou a entrada em cena de um concorrente digno de registo, o Le Revê.
O próprio acesso à sala, feito através dos corredores e átrios avermelhados, aveludados e brilhantes do Wynn deixa perceber algo especial. Lá dentro, revela-se o único aqua-theater de Las Vegas.
Assim que a acção tem início mergulha, nada, dança, salta e representa um elenco de 85 artistas ágeis capazes de combinar força, sensualidade e drama num mundo anfíbio e aéreo de fantasia que encanta o mais céptico dos espectadores.
De volta à Las Vegas real, nem tudo é tão elegante. À saída do Wynn, um semáforo no vermelho detém um pequeno grupo de pedestres e um camião adaptado para fazer de outdoor móvel.
A tela exibe um anúncio sedutor.
Uma loura irresistível surge deitada sobre um sofá, de cabeça reclinada e olhos fechados numa postura de pura provocação e volúpia.
O texto, em dourado, remete para a origem supostamente sofisticada de tal preciosidade. E é directo: ”Treasures. Gentlemen’s Club & SteakHouse”.
Estamos em Las Vegas. Na Cidade do Pecado, tudo tem perdão.