A varanda do quarto do Hotel Kviknes revela-nos o braço profundo do Esefjord.
Delimitam-no montanhas pardas de neve tardia. E percorrem-no novelos de humidade que pairam bem abaixo dos cumes, como que a desafiar a sua supremacia milenar.
Por volta das sete daquela tarde sem fim, fazemos fé na misericórdia da meteorologia. Agarramos nas mochilas com a tralha fotográfica e saímos sem rumo.
Não chegamos a caminhar quinze minutos. Ainda em plena rua Laerargata, as mesmas nuvens plúmbeas que admiravámos da varanda do quarto, descarregam todo um dilúvio. Mal conseguíamos ver a rua por diante quanto mais os cenários e a vida local que contávamos apreciar.
Cansados de sucessivos despertares e deitares madrugadores, a precisarmos de recuperar energias e o ânimo, batemos em retirada.
Aguardava-nos um jantar revigorante. Mas não só. Ainda nos refazemos da molha quando o telefone do quarto toca. Confirmam-nos um encontro já antes marcado com o proprietário do hotel.
O Périplo pela História Secular do Hotel Kviknes
Sigurd Kviknes identifica-nos. Sigurd é um dos descendentes de quarta geração da secular e profícua família Kviknes que assumiu o controle do hotel em 1877. Também é general manager do negócio, a par das suas irmãs Marta e Kari.
Sigurd assume o papel de cicerone. Conduz-nos pelas salas históricas do seu estabelecimento num modo de visita de museu.
As paredes do Kviknes Hotel estão repletas de quadros. Quadros dos pintores famosos que, a determinada altura, lá se hospedavam ou que construíam casas na povoação. Artistas que se cruzavam em Balestrand determinados a pincelarem paisagens para a eternidade.
Sigurd apresenta-nos naturezas, sobretudo fiordes, de Hans F. Gude, Johannes Flintoe e Hans Dahl. Além das naturezas, retratos dos Kviknes ancestrais.
Espreitamos ainda o Hoivik Room, assim baptizado em homenagem ao artesão Ivar Hoivik que criou inúmeras peças de mobiliário e decorativas em madeira esculpida em estilo viquingue-norueguês dragenstil, que é como quem diz, do dragão.
Hoivik foi ainda responsável por muitas das molduras e trabalhos que enfeitam as casas mais antigas de Balestrand.
Sigurd prossegue com a sua apresentação. Sala após sala, quadro após quadro, chegamos a um episódio do acolhimento histórico do hotel que nos faz redobrar a atenção.
Os Kviknes receberam realezas, presidentes e primeiros-ministros, estrelas de cinema e outros artistas dos quatro cantos do mundo, incluindo Kofi Annan, Kirk Douglas e Tony Curtis.
O Destino de Férias Favorito do Kaiser Guilherme II
Fascinou-nos em particular a estória local de Guilherme II, o último Imperador da Alemanha e rei da Prússia. A sua paixão pela Noruega e pela magnificência dos fiordes era tal que o Kaiser Wilhem se tornou um dos visitantes mais frequentes da região. Guilherme II chegou a confessar que a Noruega preservava o encanto genuíno e tradicional que a Alemanha nunca devia ter perdido.
Visitou Balestrand quase todos os anos entre 1889 e 1914. Nessas ocasiões, foi cliente do hotel, não hóspede. Sigurd explica-nos que Guilherme II chegava a bordo do seu iate imperial de 120 metros Hohenzollern II e lá dormia e saía para explorar o entorno.
Guilherme II perdia-se de amores pelo mar. De tal maneira que o tempo total que passou a viajar neste iate perfez vários anos.
Por norma, o imperador ancorava em Balestrand, em Julho. Costumava ficar até Agosto. No primeiro ano, teve a companhia da mulher. Foi caso único e correu mal. Daí em diante, preferiu cercar-se de um grupo de oficiais que escolhia a dedo para conviver nas festas e passeatas a que se entregava.
Uma equipa de fotógrafos, registava as suas evasões. Guilherme II tinha o seu papel de líder germânico em boa conta. Fazia questão de se documentar como as vedetas dos filmes. E só se submetia à fotografia quando achava que a luz o glorificava.
Abunda, em Balestrand, esse tipo de brilho. De cada vez que o sol espreita por entre as nuvens densas e azuladas, tinge os fiordes daquele fulgor cromático que Hans Dahl, Adelsteen Normann e compinchas ou rivais da pintura ansiavam por capturar nas telas.
Adelsteen Norman viveu, trabalhou e divulgou os seus quadros a partir de Berlim. Sem surpresa, as suas pinturas dos fiordes tiveram enorme influência na popularidade da Noruega entre os alemães, a começar pelo Kaiser Guilherme II.
O Eclodir da 1ª Guerra Mundial que Arruinou as Férias do Kaiser
Em Julho de 1914, Guilherme repetia o habitual retiro de Balestrand. No dia 25, pela tarde, visitava o amigo professor e pintor Hans Dahl na sua propriedade de Strandheim.
Durante o convívio, recebeu notícias do agravamento político-diplomático entre a Áustria-Hungria e a Sérvia, despoletado pelo assassínio do arquiduque prussiano Franz Ferdinand, quase um mês antes.
“Estava sentado nesta mesma cadeira” informa-nos Sigurd Kviknes e levanta o seu assento para nos mostrar um escrito em norueguês na base do assento que o comprova. “a minha família conseguiu comprar a cadeira num leilão.
E aí está. Nos dias anteriores, agastado pela perspectiva de interromper o seu sagrado retiro, o Kaiser fez todos os possíveis para desprezar o agravar dos eventos. Quando a Áustria-Hungria tornou o conflito militar, viu-se mesmo obrigado a partir de volta à Alemanha.”
Seguiram-se os quatro anos da 1ª Guerra Mundial e, em Novembro de 1918, a derrota da Alemanha, a abdicação do Kaiser e o exílio na Holanda e na Grécia. Guilherme II não voltaria à sua amada Balestrand.
Uns instantes de conversa depois, também Sigurd dá por encerrado o périplo. Despedimo-nos. Mesmo se nos mantivemos alojados no seu Kviknes Hotel até meio da tarde seguinte, não o voltaríamos a ver.
Para Cá e Para Lá, pelas Ruas de Balestrand
Nessa mesma noite, jantamos, senão como imperadores, pelo menos como reis, no salão de refeições grandioso do Kviknes Hotel. Durante o repasto, apresentam-nos Sandra, uma compatriota das imediações de Corroios que trabalhava na cozinha.
O novo dia amanheceu disposto a fazer esquecer a véspera, solarengo como já não pensávamos possível por aquelas paragens.
Aproveitamos a benesse para completarmos a caminhada que a chuvada do entardecer anterior tinha frustrado. Começamos por percorrer o caminho Kong Beles Veg.
Admiramos a imponência de madeira das suas vivendas coloridas, a Dragon House excêntrica de Hans Dahl e as bem mais convencionais na marginal de Balestrand.
Boa parte delas, surgem dotadas de ancoradouros privados que se projectam pelo Mar do Sognefiord adentro. Algumas, têm a enriquece-las os rendilhados incríveis criados por Ivar Hoivik ou, pelo menos, inspirados no seu trabalho.
Incluem elementos recuperados dos tempos viquingues, das suas sagas e mitologia.
A Igreja “Inglesa” de Santo Olavo
Uns metros acima, destaca-se das vivendas a igreja anglicana de Santo Olavo, o rei da Noruega entre 1015 a 1028, responsável pela cristianização da nação.
Esta igreja com visual medieval é também conhecida como A Igreja Inglesa. Isto, por ter sido erguida por Knut Kvikne em honra da sua esposa inglesa, Margaret Sophia Green Kvikne. Margaret era filha de um padre inglês, uma das muitas turistas britânicas que visitavam Balestrand nos finais do século XX.
Em 1894, meros quatro anos após casar com Knut, Margaret adoeceu com tuberculose e faleceu. Em sua homenagem, Knut Kvikne tornou realidade o sonho que a esposa lhe tinha confessado de ver uma igreja inglesa em Balestrand.
Hoje, durante o Verão, a elegante Igreja Inglesa acolhe serviços todos os Domingos, incluindo casamentos. Recebeu-nos ainda a nós e acolhe todos os forasteiros recém-desembarcados que a espreitam. Nas outras estações do ano, são apenas levados a cabo serviços religiosos quando os moradores de Balestrand chegam a acordo.
Ciderhuset: Cidra de Balestrand Para Todos os Gostos
À falta de missa, subimos a íngreme Sjotunsvegen apontados a uma prova de cidra proporcionada por uma das principais produtoras locais, a Ciderhuset. À imagem do hotel Kviknes, esta empresa é gerida em modo familiar, neste caso, pela família Høyvik Eitungjerde.
Com toda a minúcia e paciência do mundo, o anfitrião Age apresenta-nos a sua cidra em copinhos alinhados, mais pálida ou dourada consoante o tempo de fermentação e uma série de outros factores que ditavam a intensidade de sabor, a acidez, tudo isto à boa maneira de qualquer prova de vinho, só que feito de cidra.
Deixamos a Ciderhuset por volta das duas e meia da tarde. Pouco abaixo, de novo na iminência da baía, damos com a estátua imponente de Bele, um rei viquingue com estatuto lendário na Noruega e que, não se sabendo de onde era oriundo, subsiste no imaginário dos noruegueses como tendo vivido nestes confins sulcados e montanhosos.
Fridtjof the Bold, Bele e o Imaginário Viquingue da Noruega
A estátua rivaliza com a do rei Fridtjof the Bold, esta encomendada pelo Kaiser Guilherme II a um artista amigo e erguida, em 1913, na aldeia de Vangsnes.
Em Balestrand, o majestoso rei Bele de bronze resiste, pensativo, sobre uma base de granito, a contemplar a longínqua ponta de Vangsnes e a bifurcação do Sogneford que ali se estabelece.
Aos poucos, passo a passo, acercamo-nos do vértice ribeirinho em que tínhamos desembarcado na povoação e em que Balestrand encara os vários fiordes que a acolheram. Contornamos o Museu Norueguês das Viagens e entramos na rua Holmen. A caminho da doca dos ferries, confrontamo-nos com uma roulotte-gelataria gerida por adolescentes que tentam animar com tropelias o tédio a que se viram votados.
Um pouco acima, por detrás do Aquário de Sognefjord, entre um núcleo de casas vermelhas, encontramos bacalhau a secar num estendal. Ostenta o visual salgado que nos é tão popular e que a Noruega há seculos renova em Portugal.
Vários barcos a remos servem este núcleo habitacional. Um deles está pintado com uma paleta de cores psicadélica mas que combina com a bandeirinha norueguesa que ondula sobre a popa.
A essa hora, a bonança meteorológica da manhã já cedera à atmosfera azulada e tempestuosa que quase sempre escurece o labirinto de fiordes em redor: o Esefjord para noroeste, o mais curto de todos.
A sul, o Sognefjord, o mais longo e mais profundo da Noruega, orientado tanto para ocidente – onde encontra o Mar do Norte – como para leste. A norte, o Vetlefjord, com meros seis quilómetros de extensão, quase paralelo a um outro bem mais longo, o Fjaerlandsfjord.
Com as cinco da tarde e o ferry proveniente de Flam a aproximarem-se, precipitamos o regresso ao Kviknes Hotel, agarramos nas malas e corremos de volta ao porto por onde tínhamos andado. Instantes depois, embarcamos para a navegação Sognefjord abaixo.
Só desembarcaríamos às nove da quase-noite boreal, no grande porto ex-hanseático da Noruega: Bergen.