O voo com partida da região do Savuti que a BBC tornou conhecida pelos documentários sobre os seus leões comedores de elefantes só durou 35 minutos.
Foi o suficiente para nos revelar a imensidão árida do Kalahari, salpicada de arbustos espinhosos, sulcada por longas estradas sinuosas de terra mais arenosa que batida.
Da altitude a que viajávamos, percebíamos em modo geológico e panorâmico, a importância que água tinha para aquela região.
À imagem do caudal do rio Solimões que corre lado a lado com o do Amazonas quilómetros a fio, ambos incompatibilizados devido às suas distintas composições e densidades, vistas do ar, extensões imensas da superfície terrestre ali opunham-se com diferentes graus de humidade.
Verde-amarelado contra um acastanhado aparentemente mais poeirento definiam quantidades discrepantes de água subterrânea.
De quando em quando, fosse em que tipo de mancha de solo fosse, avistávamos manadas longínquas de elefantes que bebiam e chafurdavam em charcos perdidos no nada.
Eram estes os postos de abastecimento que permitiam aos paquidermes e a outras espécies sobreviver à longa migração para sudeste, onde se escondia um domínio bem mais verdejante e estável.
De Rio Cubango em Angola ao Rio Okavango que Alaga o Kalahari
Quando nasce no município Tchikala-Tchohanga do Huambo, o Okavango é chamado de Cubango. Dali, flui através das províncias do Bié, de Huila e de Cuando-Cubango e, logo, pela faixa namibiana de Caprivi.
Pouco antes de entrar no noroeste do Botswana, na iminência das cascatas de Popa, o rio acelera o seu curso. Nas imediações de uma aldeia de nome Shakawe, as suas águas dispersam-se.
Retêm-nas as areias do deserto do Kalahari e ar seco acima. Só nesta divagação fluvial conta-se 95% da água doce do Botswana.
Enquanto a avioneta se faz ao aeródromo desvendámos meandros caprichosos do rio, desenhados em vegetação baixa.
Pousamos na pista relvada da Reserva Animal de Moremi.
Aterragem Suave no Coração do Delta do Okavango
Assim se denomina a única secção do Delta do Okavango oficialmente delimitada (em 1963) para permitir a preservação da vida selvagem que a caça ilegal fazia declinar.
Rangers nativos recebem-nos com boas-vindas acolhedoras. Em seguida, conduzem-nos a um pontão próximo do aeródromo. Subimos a bordo de um pequeno barco metálico com tecto de lona. Logo, zarpamos rumo à lagoa de Xugana.
A viagem pouco fica a dever às melhores cenas de acção dos clássicos jamesbondianos.
Durante quarenta minutos, serpenteamos a alta velocidade, por canais com água ocre ou cor-de-champanhe, delimitados por papiros às vezes com mais de dois metros de altura.
Estes canais alargam e estreitam de forma mais ou menos aleatória. Aqui e ali, apertam tanto que as canas invadem os barcos e nos prendam com estaladas vegetais.
Na sua imensidão, o Delta do Okavango revela visuais contrastantes e, em quase 16.000 km2, abriga os mais diversos habitats.
Grandes áreas de terra seca, surgem do meio de zonas encharcadas sem fim. São florestas de mopane e arbustos espinhosos, savana seca, pastos, planícies alagadas, um labirinto de pântanos, de canais e de enormes lagoas.
Visto do espaço, o Delta do Okavango aparenta uma pegada de ave.
O papiro é uma das duas espécies vegetais que predominam nos seus pântanos perenes , uma das que fornece os registos mais úteis das suas oscilações.
A outra, a palmeira Fénix ou anã, prevalece nas muitas ilhas da região.
As Grandes Lagoas que Intercalam a Navegação pelos Canais
Quando menos esperamos, a embarcação volta a entrar nas tais lagoas desafogadas, cobertas de nenúfares e partilhadas por cerca de trinta e cinco milhões de peixes de oitenta espécies, por crocodilos do Nilo, por hipopótamos, marabus, mergulhões, íbis e uma miríade de outros répteis e aves.
Os crocodilos e os hipopótamos são os reis e senhores do Delta do Okavango. De tal forma perigosos que os Bayei – um dos cinco grupos étnicos dos nativos que o habitam o – ensinam uma espécie de poema preventivo às suas crianças:
“Eu sou o rio. A minha superfície dá-nos vida. Por debaixo, está a morte.”
A liquidez impressionante e luxuriante do cenário é alimentada de uma forma pouco palpável ou localizada.
Pode faltar pluviosidade no delta durante meses a fio. No entanto, chuvas intensas nas terras altas ( 1780m ) do Planalto angolano do Bié – a mais de 800 km a noroeste – geram uma espécie de enxurrada em câmara lenta.
A superfície destas paragens interiores de África é tão plana que a inundação pode levar mais de três meses a sentir-se à entrada delta. Aos cerca de 800 km que a nova água percorre desde Angola, há que contar ainda com quatro meses para que atravesse os 240 km de extensão do grande pantanal do Botswana.
Ao chegar às imediações de Shakawe, o Delta aumenta de forma substancial. Daí, em diante, a enxurrada vagarosa move-se em várias frentes, pelos tais seis dedos da pata que os satélites registam.
Os habitats mais profundos e diversos residem na “perna” de quase 100 km. Ali, a inundação atinge o seu pico em Abril, quando faz o nível do rio subir quase dois metros.
Em Maio, a profundidade começa a diminuir.
O Achado que Deixou o Missionário David Livingstone Incrédulo
Terá sido o explorador e missionário David Livingstone o primeiro europeu a dar com o Delta do Okavango.
O escocês encontrou-o, em 1849. Nessa altura, o caudal fluía de forma diferente da de hoje, não menos misteriosa.
“A água não pode correr para trás ou para cima” retorquiu Livingstone, ao companheiro de descobertas dessa altura, o naturalista sueco Charles Andersson.
Ambos se mostraram abismados com os canais que ora fluíam a grande velocidade ora paravam de fluir. Ou que chegavam mesmo a inverter o seu sentido.
Livingstone pediu a nativos Bayei para lhe explicarem o fenómeno. Estes, contaram-lhe o que sabiam: todos os anos um chefe do norte do seu território, de nome Mazzekiva, matava um homem e atirava o corpo ao rio. Depois disso, a água corria para sul.
É pouco provável que o aventureiro se tenha conformado com tal esclarecimento.
Muito depois de Livingstone, um Turismo Ecológico Sempre em Voga
Livingstone abriu caminho para uma catadupa de visitantes que, a partir da segunda metade do século XX, se deslumbraram com um dos cenários mais fascinantes de a África.
Nos nossos dias, o Delta do Okavango foi protegido pelas normas da Convenção de Ramsar que salvaguardam a preservação dos pantanais do mundo.
Mesmo se a origem e parte substancial do rio Okavango está em Angola e na Namíbia, onde não usufrui dos mesmos cuidados que tem no Botswana, o Botswana só beneficiou.
Nesta jovem nação, apenas as prolíficas reservas de diamantes garantem mais divisas estrangeiras que o turismo no Delta do Okavango.
Os proveitos turísticos têm origem em licenças de operação e taxação de ecolodges sofisticados e dispendiosos instalados em lugares estratégicos. Vários, são geridos por proprietários sul-africanos, mais experientes no ofício.
Xugana. Outro dos EcoLodges Privilegiados do Delta do Okavango
O Xugana em que nos instalamos era um deles.
Camuflado por vegetação densa, culminada por árvores majestosas, tinha, entre outros, o dom da absoluta simbiose com a natureza circundante.
Pulavam, nadavam, arrastavam-se e esvoaçavam, por lá, esquilos e uma miríade de pássaros e insectos coloridos, répteis e anfíbios.
Como é frequente no Botswana e noutros lodges que ficaram para trás, o Xugana mantinha-se aberto à fauna local.
De noite, para gáudio dos hóspedes mais entusiasmados com o realismo da Natureza da zona, visitam-no espécies de maior porte, incluindo os furtivos leopardos.
Já instalados, descansamos até por volta das quatro da tarde.
Nesse fim de dia, ainda voltamos a sair de barco para o delta.
A incursão tem como objectivo explorarmos os cenários e a fauna de outras das suas ilhas, também de mokoro, a canoa tradicional da região, feita de um único tronco escavado.
Mas as mokoro eram demasiado estreitas e instáveis. Tendo em conta que dificilmente conseguiríamos resistir a fotografar de pé, representavam um sério risco para as câmaras que transportávamos.
A Imponência Selvagem e Intimidante de África
Optamos, assim, por começar de fora.
Por avaliar e registar primeiro a acção a partir da margem. Quando nos separamos do resto da comitiva, um dos guias deixa-nos apenas com um conselho: “Se algum animal aparecer, saltem para a caixa da carrinha.”
Sós, face à vastidão do delta, sentimos como nunca a imponência esmagadora de África.
As nuvens azuis e lilases que descarregavam à distância, as acácias gigantescas que se destacavam contra o céu pesado e o vento que siflava através da floresta de papiros, impunham-nos uma desagradável sensação de vulnerabilidade.
Além dos hipopótamos e crocodilos que sabíamos ser mais raro atacarem longe das margens ensopadas, o Delta do Okavango acolhe uma população generosa dos mais capazes predadores terrestres.
Leões, chitas, leopardos, hienas e mabecos eram apenas alguma das espécies de que teríamos, em vão, que nos defender caso algo corresse mal.
Em redor, percorriam-no ainda cerca de 60.000 elefantes – uma das maiores manadas do mundo – e milhares de búfalos irascíveis.
Sobrevivemos à espera solitária e ao percurso de mokoro entre hipopótamos e crocodilos furtivos.
No regresso, assistimos a um pôr-do-sol esplendoroso, rasgado por centenas de aves. Vimo-lo, adornado por uma mancha cinzenta e granulada, desenhada pela queda da Pula, a chuva do Botswana.
De tão forma valiosa que denomina a moeda nacional da nação.