Não há viagem pela América do Sul em que o procedimento não se repita.
A Argentina, um dos maiores produtores de carne do mundo, tem aversão às excepções. “Buenos dias. Avanzen despacito para acá, por favor”, diz-nos com uma arrogância protocolar o oficial de serviço.
Entramos no país das pampas vindos do Brasil, pela Ponte Internacional Tancredo Neves. Na fronteira, as autoridades da SENASA (Secretaria Nacional de Sanidad Agropecuária) obrigam-nos – como a quem quer que entre no país – a passar com os pneus do carro sobre os seus sagrados pedilúvios, grandes esponjas ensopadas de um líquido esterilizador.
Em seguida, temos ainda que sair e fazer o mesmo às solas do calçado.
O responsável por estes cuidados redobrados e pelas longas filas de trânsito que se formam é um Aphtovirus infeccioso que apesar de conhecido há mais de 2000 anos, continua a disseminar a temida febre aftosa.
Esta doença pode contagiar manadas de vacas inteiras em três tempos. Provoca enormes perdas nas economias dos países que não se protegeram a tempo. Na América do Sul, as epidemias têm sido recorrentes. E geram rixas políticas vergonhosas sempre que os países se culpam uns aos outros.
A Argentina, em particular, tem provas dadas de conhecimento da causa. Mesmo que o nome não o traduza, foi Scholein Rivenson, um doutor veterinário argentino de Gualeguaychú, província Entre Rios, que desenvolveu a primeira vacina eficaz contra a doença.
A Colónia de Pellegrini, nas Margens dos vastos Esteros del Iberá
Nas semanas que se seguem, descobrimos os cenários remotos do noroeste argentino, em Corrientes, a zona alagada dos Esteros del Iberá, uma enorme extensão de lagoas e pauis que concorre em tamanho e riqueza de ecossistema com o pantanal brasileiro.
Ali, a par da beleza da paisagem e a miríade de espécies selvagens – dos caimões e jacarés às anacondas e capivaras – fascina-nos a crueza visual e a vida sedada de Colónia Pellegrini, uma aldeia pobre e alienada pelo isolamento a que foi votada nas margens da Lagoa Iberá.
Colónia Pellegrini conta apenas com algumas habitações térreas algures entre a vivenda e o trailer. E uma ou outra mercearia quase sem provisões. Mais aquém, a lagoa que atrai turistas e biólogos de todo o mundo, está cercada por estancias criadoras de gado.
Estas fazendas dão emprego a centenas de gaúchos algo deslocados da vastidão pampenha que tem início algumas centenas de quilómetros para sul.
A Vulnerabilidade Sul-Americana e Argentina à Febre Aftosa
Os quarenta milhões de argentinos compõem uma das populações que mais carne vermelha consome à face da Terra. Para isso, contribuem as suas famosas parrilladas, realizadas a toda a hora, por todo o país.
Mas são também uma das principais nações exportadoras de carne do produto. São razões de sobra para as manadas de gado de La Quiaca (na fronteira com a Bolívia) a Ushuaia (cidade mais a sul do mundo, capital da Terra do Fogo) serem submetidas a toda a hora a medidas de prevenção.
Ficamos hospedados nas imediações de Colónia Pellegrini. Após repetidas incursões madrugadoras de barco na vastidão inundada, a dona da Pousada de La Laguna suspeita que nos agradaria uma mudança drástica de planos.
Pergunta-nos se queremos acompanhar uma vacinação de vacas. A experiência não é de todo exótica para quem, como nós, teve o privilégio de viver o interior de Portugal.
Mesmo assim, a atmosfera selvagem-rural daquela região retirada da Argentina, a possibilidade de convivermos com um grupo genuíno de gaúchos em pleno trabalho de campo provam-se privilégios irrecusáveis.
A Vacinação Acidentada do Gado da estancia Swiss Agro
Aceitamos o repto. Na manhã seguinte, o capataz da pousada leva-nos numa carrinha em direcção à estancia Swiss Agro, onde o veterinário é esperado. Encontramo-lo mais cedo do que contávamos. A caminho da quinta. E em apuros.
El Doctor ainda não encontrou explicação para o fenómeno mas parece ser sempre assim: quanto mais tenta fazer render o tempo, pior lhe correm os dias. Faltavam-lhe quatro visitas até ao pôr-do-sol quando a tábua de uma das várias pequenas puentes que tinha que atravessar cedeu.
Deixou-lhe a carrinha presa ao estrado e as vacinas em risco de sobreaquecimento.
O acidente faz parar quem passa. Apesar de sucessivas tentativas solidárias de libertação do veículo, só um tractor ferrugento entretanto recrutado resolve a encrenca.
Quando chega ao rancho, atrasado e irritado, o veterinário encontra tudo a postos para dar início à vacinação. O humor dos gaúchos residentes depressa lhe devolve a boa disposição: “Calma doctor!! Asi los animales se ponen nerviosos!”.
Estamos a entrar no pino do Verão do hemisfério sul. Fazem mais de quarenta graus.
Como se não bastasse, as movimentações do gado levantam nuvens de pó que invadem os olhos e o nariz e se agarram ao suor.
Calor, Pó e Gado Teimoso. O Trabalho Árduo dos Gaúchos
O desconforto faz parte do quotidiano destes cowboys da pampa que o aliviam com recurso a chapéus, cintos e chiripás (saiotes) típicos de couro que combinam com camisas leves e claras e lenços azuis.
As suas vidas são passadas a cavalo e debaixo do sol e da chuva. Mesmo assim, acabam por nos confessar que, entre todas as tarefas, é com as repetitivas vacinações que mais embirram.
A esforço, os gaúchos agrupam e conduzem as vacas dos currais para um corredor que as aperta e imobiliza numa espécie de espartilho de madeira. Ali, a um ritmo maquinal, o veterinário espeta a enorme seringa em dorso atrás de dorso.
Renova as doses e mantém uma contagem precisa das cabeças de gado imunizadas. São seiscentas e vinte na Swiss Agro. A tarefa dura duas horas.
Segundo a sua estimativa, uma das estancias que trazia programada para a tarde terá que ficar para a manhã seguinte.
Não é nada que não lhe aconteça com frequência. Desta vez, o atraso impõe-lhe um árduo castigo. Em vez de regressar a Posadas, terá que pernoitar na isolada Colónia Pellegrini.
Malgrado os contratempos, a tarefa e o dever ficam cumpridos.
Os gaúchos recuperam da correria enquanto a poeira levantada pelos animais assenta. Um deles, o sempre sorridente Pablo, descontrai a brincar com um cachorro da estancia sob o olhar indiferente dos companheiros.
El Doctor sai de cena com pompa e circunstância, a enaltecer as virtudes do seu trabalho. “Muy bién. Estas ya quedaran protegidas.
No se si saben, pêro solo en el Reino Unido, en 2001, la fiebre aftosa ha matado más de 6.000.000 de animales. Han perdido quasi 18 mil milliones de dólares. Imaginense eso acá en Argentina...”