Com o tempo que tínhamos para Saint Croix quase a esgotar-se, viramos a atenção para oeste e para a outra, a segunda e última, cidade da ilha.
A via progride para terras mais altas que nos revelam plantações do que sempre foi o principal cultivo destas partes, a cana-de-açúcar. E abaixo, a maior distância, o azul sem fim do Mar das Caraíbas, reforçado por novo dia solarengo, retalhado por nuvens tresmalhadas.
De autoestrada, a Melvin H. Evans Highway tem pouco ou nada, nem a largura, nem o trânsito que assim a validem. Dois ziguezagues aproximam-na da costa sul de Saint Croix e do seu aeroporto, ali protegido dos ventos do norte.
Regressamos a áreas esquadrilhadas por vias estreitas, ajustadas a um casario despretensioso.
A Herança Colonial e Esclavagista do Estate Whim
Num tal de distrito Whim, deparamo-nos com a escala incontornável do Estate Whim, monumental enquanto grande casa colonial e esclavagista da ilha, a mais antiga propriedade local de produção de cana-de-açúcar e derivados.
E a única nas Ilhas Virgens, entretanto, transformada em museu.
Compõem-na uma mansão senhorial, uma enorme cozinha, aposentos dos escravos e um engenho de açúcar integrante de um complexo de processamento mais amplo.
Ao chegarmos à entrada da casa senhorial, erguida, em 1760, com paredes de pedra coral em formato oval, damos com a propriedade encerrada.
À imagem do sucedido noutras partes da Ilhas Virgens (Americanas e Britânicas) e das Antilhas, a passagem sucessiva dos furacões Irma e Maria, em Setembro 2017, tinha causado sérios danos. Sobretudo no telhado de telhinha quase de folha de que o vendaval arrancou uma secção frontal.
Nas traseiras, em jeito de ironia, duas peças de roupa perduram num estendal, presas apenas por quatro molas, lado a lado com um alguidar de latão e de uma velha tábua de lavar.
Sem acesso ao cerne colonial da fazenda, deambulamos em redor. Uma chaminé destaca-se bem acima de um velho trapiche, de um moinho e de um motor a vapor de 1847, que a humidade tropical mantém enferrujado.
Iguanas recarregam-se ao sol, junto da velha casa dos escravos. Dormitam, tranquilizadas pela já longa ausência dos habituais visitantes.
Com a fazenda-museu aberta e a funcionar em pleno, teríamos muito mais a descobrir e a fotografar, sobretudo no seu interior secular e faustoso.
Dele barrados, prosseguimos rumo a Frederiksted, o destino final daquele périplo por Saint Croix.
Frederiksted, a outra Cidade na Costa Oeste de Saint Croix
O Whim State pouco distava da cidade. Ao longo dos anos, sempre dependeu do seu porto para exportar o açúcar e o rum que produzia.
O desenvolvimento histórico-colonial de Frederiksted resultaram dessa mesma dependência e interação, a das fazendas de cana-de-açúcar de Saint Croix do porto de águas profundas, da alfândega e das restantes infraestruturas e instituições e negócios da segunda cidade da ilha.
Uma flexão a 90º da Centerline Road em que seguíamos, deixa-nos na Christiansted Bypass que serve de artéria dos fundos a Frederiksted.
Num ápice, a própria configuração da costa oeste que a acolheu, atalha-nos caminho para a grelha rectangular do centro e para a marginal que lhe serve de montra caribenha.
A Génese Mercantil e Norte-Europeia de Frederiksted
A cidade foi erguida em, 1700, sob supervisão de um urbanizador oficial, Jens Beckfor. No plano inicial, contava com 14 quadras habitacionais por outras 14.
Foi concluída com apenas 7 por 7, de maneira a conceder mais espaço ao comércio que se esperava que viesse a florescer.
Estamos em plena hora de calor. Cumulus nimbus altivos começam a intensificar-se no céu acima. Do tempo que levávamos à descoberta das Antilhas, sabíamos bem o que aquele céu pesado significava.
O mesmo sol inclemente que carregava o firmamento, submetia os transeuntes à sombra da sucessão de arcadas da Strand Street, assim erguida pelos dinamarqueses também em função das suas peles alvas e da pouca melanina e resistência que oferecem aos raios solares.
Tal como fizeram em Christiansted, os prédios que ali alinharam e que incluíam as arcadas eram quase todos amarelos. Um outro de um azul ou verde claro, quebravam a uniformidade que, de outra maneira, aborreceria a vista.
A Resistência algo Decadente do Forte Frederik
No seu todo, contrastavam com os tons de esmeralda e turquesa do Mar das Caraíbas e destoavam sobremaneira do vermelho gasto e descascado do velho Forte Frederik.
Uns poucos visitantes cirandavam para cá e para lá, em busca de novidades.
A nós, deslumbrou-nos a inesperada decadência da fortaleza, bem distinta do estado do Forte Christiansvaern à entrada de Christiansted, esse, belo e amarelo, imaculado e envolto de um ervado e jardim condizente.
Já o forte Frederik parecia carecer do respeito pela importância que sempre manteve.
Uma Intrusão do Reino da Dinamarca-Noruega num Domínio Caribenho Disputado
Foi o reino Dinamarquês-norueguês que ditou a sua construção, levada a cabo entre 1752 e 1760. À data, as Antilhas (Grandes e Pequenas) eram disputadas de forma acérrima entre Inglaterra, França, Holanda e Espanha.
Pouco habitual naquelas paragens tropicais do mundo, o reino Dinamarca-Noruega teve que se esforçar a dobrar para não perder as suas ilhas, em parte encontradas sem potência dominante e ocupadas (Saint Thomas e Saint John), noutra parte, adquiridas à companhia das Índias Ocidentais Francesas (Saint Croix).
A ameaça não estava apenas nas grandes nações europeias. O termo “Piratas das Caraíbas” tem a sua razão histórica de ser. Fossem independentes, ou “patrocinados” pelas Coroas europeias para assaltarem as rivais, uma vasta corja de piratas, corsários e, mais tarde, flibusteiros sulcavam aquele mesmo mar, de olho no que quer que parecesse oportuno.
Galeões sobrecarregados, portos e cidades pouco protegidos viam-se invariavelmente vítimas. Enriquecida pelos proveitos da cana-de-açúcar, Frederiksted fez o mínimo dos mínimos para resistir.
De volta à fachada sul da fortificação, a caminho do coreto no âmago do Parque Buddhoe, damos de caras com a Oscar E. Henry Customs House e, em frente, com uma estátua de bronze com visual dramático.
Um tronco desnudado sopra num grande búzio. A estátua tem o nome de “Freedom”.
Frederiksted, e a Emancipação dos Escravos de Saint Croix
Quando a analisamos, associamo-la de imediato ao episódio histórico mais badalado de Frederiksted, e razão de ser do nome do parque por que caminhávamos.
Em 1848, tudo se mantinha na mesma ordem e opressão colonial em que as Índias Ocidentais Dinamarquesas prosperavam há quase dois séculos.
Até que, a 3 de Julho desse mesmo ano, já quinze contados após a o Acto Britânico de Abolição da escravatura, um escravo libertado e artesão respeitado de nome Moses Gottlieb – mais conhecido como General Buddhoe – planeou e suscitou uma revolta dos homens mantidos escravos na Whim State e outras plantações da ponta oeste de Saint Croix.
Os escravos juntaram-se e precipitaram-se numa marcha incendiária que ficou conhecida por “Fireburn” e veio a granjear a Frederiksted o epíteto de “Freedom City”.
Nesse mesmo dia, conseguiram forçar que o Governador-General da ilha, Peter von Scholten, proclamasse no Forte Frederik e sem retorno, a sua emancipação dos fazendeiros que, a contra-corrente da História, os mantinham cativos.
Daí em diante, sem mão-de-obra gratuita, os Dinamarqueses viram-se mais e mais em apuros para preservarem as suas longínquas colónias.
Aos poucos, abandonaram-nas aos ex-escravos e a uns quantos europeus resistentes.
O Grande Maremoto das Ilhas Virgens de 1867
Em 1867, uns e outros, passaram por uma provação que os apanhou de surpresa.
Um sismo de grande intensidade gerou vagas com quase oito metros de altura que entraram pela cidade adentro. O sismo e maremoto das Ilhas Virgens causou uma destruição generalizada e pelo menos cinco mortos.
Pouco depois do virar para o século XX, a debandada dos dinamarqueses oficializou-se. Ao abrigo do Tratado das Índias Ocidentais Dinamarquesas, de 1917, os Estados Unidos adquiriram as três ilhas principais do arquipélago por 25 milhões de dólares.
Ano após ano, as ilhas e Frederiksted afro-americanizaram-se até à realidade que lá desvendamos.
A Frederiksted Algo Americanizada dos Nossos Dias
Hoje, a cidade possui o único porto de cruzeiros de Saint Croix. Desenvolveu uma existência bipolar, alterável consoante a presença e a ausência dos grandes navios e da inundação de visitantes dos Estados Unidos contíguos.
Num dia sem cruzeiros, continuamos a navegar no marasmo pós-colonial intrigante, decadente e sedutor de Frederiksted.
Do nada, um grupo de colegas trajadas com fatos escolares, aflui ao pontão à frente do forte. Guiadas por um fotógrafo voluntário, entregam-se a uma produção sob o mote da sensualidade académica.
Entretemo-nos a apreciar as suas poses e expressões quando os cumulus nimbus que toda a tarde vimos elevarem-se, ditaram o término do recreio.
Chuvada Tropical em Plenos Trópicos Caribenhos
Uma bátega tropical como há muito não apanhávamos, castiga Frederiksted sem apelo. As estudantes e uns poucos transeuntes mal têm tempo de chegar às arcadas que os dinamarqueses fizeram protectoras.
Quando lá se abrigam, estão já ensopados, conformados e até algo intimidados pela inesperada intempérie.
Três adolescentes em trajes de banho surgem do nada. Refugiam-se mesmo ao nosso lado.
Trocamos umas poucas palavras de circunstância. “Isto, a esta hora costuma demorar!” alertam-nos como quem avisa que mais valia darmos corda às pernas.
Um adulto que chega numa pick-up manda-lhes um grito. O trio de adolescentes despede-se à pressa. Some-se para sul da cidade, sobre a caixa da carrinha,.
Ainda esperamos um pouco, a ver se o tempo os contradizia.
Assim que percebemos o quanto lhes assistia a razão, rendemo-nos à chuva, em busca da boleia que tínhamos combinada de volta a Christiansted.