Aproximamo-nos da meia-noite.
Ao subirmos em direcção às terras altas do lago Myvatn, passamos os olhos pelo retrovisor. Percebemos que as nuvens abrem. Que desvendam um céu de vários tons fogosos que se alastra ao oceano Árctico e à superfície frígida do litoral norte da Islândia.
A excentricidade boreal daquele ocaso convida-nos a encostar o carro à berma gelada. Apreciamos o seu desenrolar por alguns minutos, até que o vento enregelante nos leva a ilusão de conforto térmico impingida pelo desfazer do grande astro.
Aguentamos o que aguentamos. Logo, voltamos ao refúgio amornado do carro.
Por pouco tempo. Alguns quilómetros para diante, espanta-nos nova visão incandescente, desta feita paralelepipédica, ainda mais resplandecente na quase noite que se havia instalado.
Investigamos aquele O.V.N.I. pousado com o cuidado que nos merecia até porque uma ladeira escorregadia e um descampado pejado de buracos tapados pela neve o separava da berma da estrada.
As Estufas Algo Extraterrestres da Islândia
A poucos metros do invólucro de vidro embaciado, percebemos um conteúdo 100% vegetal. Confirmamos o que já nos ocorrera: tratava-se de uma estufa islandesa.
O sol que naquela Primavera invernosa ainda resistia quase dezoito horas acima do horizonte, chegava com raios tão insípidos que pouco nos estimulavam a pele e os sentidos.
Estávamos prestes a entrar nos meses afáveis da Islândia. Calculávamos que o clima dos seus meses antípodas fosse bem mais rude.
E, no entanto, com excepção para a ínfima duração da luz do dia, em grande parte do ano, a quase árctica Islândia até é favorecida.
O Clima Sub-Árctico ainda Assim Generoso da Terra do Gelo
Duas correntes marítimas, a Norte Atlântica e a Irminger envolvem-na.
Mantêm o oceano em redor livre de gelo e suavizam as temperaturas invernais que, de outra forma, seriam bem mais extremas que os normais 0ºC de média nas terras baixas da costa sul e -10ºC nas terras altas do interior.
Numa dimensão localizada, a intensa actividade vulcânica contribui para aquecer e preservar menos congeladas vastas áreas da ilha.
É o caso dos vulcões, fumarolas e géiseres em redor do lago Myvatn, que não tardaríamos a explorar.
Ao longo do tempo, os islandeses aprenderam como nenhum outro povo a viver com a sua delicada geologia.
E a manipularem a concentração de vulcões em favor da geração de energia geotérmica, aquecimento e alguma produção de electricidade.
A Proficiência Geotermal da Islândia
São cinco as grandes centrais geotérmicas que produzem um quarto da energia da Islândia.
Quase 90% dos edifícios do país estão equipados com aquecimento e água quente geotérmicos.
Tendo em conta que 75% da electricidade do país tem origem hídrica, percebe-se que os islandeses façam fé em que a sua nação deixe de depender de combustíveis fósseis e o menos possível de todo o tipo de importações.
Mais tarde, viríamos a perceber que a estufa excêntrica que tínhamos estado a examinar era apenas uma de muitas, mantidas com calor vindo das profundezas da ilha.
Fazia parte do tal plano ambicioso de sustentabilidade.
A Produção Vegetal em Estufa que Mal Faz Baixar os Preços
Devido ao curto período da Primavera-Verão, só os tubérculos e vegetais mais resistentes ao frio, como as batatas, os nabos, as cenouras, e as couves, podem ser cultivados ao ar livre.
Estufas como aquelas aumentavam de número a olhos vistos em lugares estratégicos do país. Permitiam gerar, em quantidades cada vez menos limitadas, tomates, pepinos, pimentos, flores, plantas e até bananas, uvas e uma outra iguaria tropical.
Como pudemos sofrer na pele, a produção em estufa ainda pouco alterava o preço do isolamento insular e setentrional da Islândia:
“São 3500, ou 3700 ou 4000 coroas (24, 25 ou 27€)” informavam-nos com educação os caixas dos supermercados em que nos abastecemos enquanto demos a volta à ilha.
“Pagam em dinheiro ou em cartão?” De cada vez que ouvíamos o total, essa era a questão que menos nos preocupava.
Invariavelmente, olhávamos para o cesto e tentávamos perceber se lá tínhamos colocado algo por engano ou cometido algum exagero. Mas não. Confirmava-se apenas o pouco que desejávamos.
Enchíamos o saco, virávamos as costas. Prosseguíamos viagem conformados e sempre entusiasmados pela imponência geológica quente e fria daquelas paragens.
Fumarolas, Géiseres e Outras Fontes Geotermais
Depois de darmos a volta à ilha, instalamo-nos em Reiquejavique. Da capital, partimos para incursões estratégicas aos domínios imperdíveis em redor.
Numa delas, paramos no vale de Haukaladur. Existem três outros vales com o mesmo nome na Islândia. Só este acolhe uma vasta área geotermal que os colonos viquingues relataram, em 1294, que se terá formado pouco tempo antes, por acção sísmica.
Aliás, os tremores de terra continuam a activar e desactivar estas fontes, como aconteceu alternadamente em Julho de 2000.
Lemos antecipadamente que se tratavam dois dos géiseres mais famosos no vale, o Strokkur e outro, o Geysir (termo derivado do verbo geysa do antigo norueguês para jorrar).
O Geysir provou-se o primeiro géiser a ser conhecido pelos europeus modernos, descrito em obra impressa e que acabou por ser adaptado como a nomenclatura mundial do fenómeno.
Ora, cedo percebemos que era tão famoso quanto caprichoso. Por norma, só irrompia em quatro ou cinco ocasiões solenes diárias. Não hesitámos, assim, em nos dedicarmos ao mais sociável Strokkur.
Vimo-lo brotar cinco ou seis vezes em menos de uma hora, a mais de 20 metros de altura e ainda fomos baptizados por borrifos da sua água escaldante e sulfurosa.
No fim dessa tarde, regressávamos à capital.
Surpreende-nos o cenário malhado do planalto de Hellisheidi, nevado mas não muito, colorido por retalhos de solo vulcânico castanho que o novo ocaso tardio transformava em ocre.
Conduzimos a um dos pontos mais altos desta chapada.
Dali, apreciamos como o lusco-fusco se apoderava da central geotermal homónima – a maior do Mundo –, situada junto ao vulcão de Hengill. E como deu origem a novo panorama extraterrestre.
Nem a geotermia nem a quase ficção científica islandesa se ficariam por aí.
“Se não gostam do tempo na Islândia, esperem só um minuto”, professa um dos ditados mais populares da nação.
O Deleite Amornado da Lagoa Azul e a Estação Geotermal de Svartsengi
Mas, já tinham decorrido bastantes mais horas do que estávamos dispostos a conceder. Uma das atracções da ilha que melhor poderia compensar a má meteorologia continuava à nossa disposição.
Dedicamos-lhe toda a manhã seguinte.
Passamos pelo portal sofisticado da sua recepção e subimos ao terraço panorâmico.
Daquele cimo, espantamo-nos com a visão surreal de centenas de banhistas em puro deleite, subsumidos na água da Bláa Lonid, a lagoa azul de Grindavik.
Ao longe, já no extremo oposto da lagoa, isolada por lajes abrasivas de lava, vislumbramos a quarta maior estação geotérmica da Islândia, a de Svartsengi.
Em plena operação, as chaminés desta central lançavam nuvens de vapor que se juntavam às celestes.
Descemos para os balneários e juntamo-nos a uma multidão internacional e anfíbia.
A temperatura da água oscila consoante a distância das fontes que a libertam.
Por norma, está perfeita mas, de quando em quando, algumas caldeiras sobreaquecem certas secções.
Ainda rimos a bom rir com a debandada de um núcleo de senhoras, aflitas com uma cozedura imaginária.
Apesar de água mal passar da cintura, dois nadadores salvadores limitam-se a divertir-se com a situação, recorrente e pouco preocupante.
Eva e Guthrun, representantes da lagoa também elas com máscaras faciais de argila ou afins e munidas de tabuleiros com taças abordam os banhistas.
Convencem-nos a testar substâncias que afiançam embelezar qualquer pele.
“Experimentem esta!” desinquietam-nos. É uma espécie de botox natural islandês!”
Entretanto, uma saraivada fulminante expulsa-nos a nós, às jovens vendedoras e aos restantes clientes balneares do caldo vulcânico.
A tormenta prova-se de pouca dura.
Ainda caía um granizo diminuto quando os primeiros islandeses começaram a regressar àquele seu famoso afago geotermal.