Foi em Iraklio que deixámos de vez o cruzeiro “Celestyal Crystal”.
Os restantes passageiros explorariam a cidade e as suas atracções em modo de toca e foge. Nós, ao nos confrontarmos com o tamanho e a grandiosidade da maior das ilhas gregas, há muito tínhamos decidimos ficar.
Por volta das 9h30, desembarcamos. Esperamos no terminal de passageiros. Decorridos dez minutos, o telefona toca. “É, Adónis. Estou aqui à frente!” Encontramo-nos com o funcionário da Crete Royal Rentals encarregue de nos entregar o carro.
É sábado de manhã. Adónis já não vai para novo mas recebe-nos com um sorriso e gentileza que nos contagiam. Passa-nos o briefing burocrático da viatura. “Então e cá de Creta, o que é que não podemos perder?” perguntamos-lhe em modo de tagarelice gratuita.
“Olhem, em Creta, à parte de Iraklio, é tudo uma maravilha!” responde-nos saturado da capital, lugar emblemático da sua malfadada rotina laboral. “Para mim, Chania é o mais bonito!” acrescenta, algo equivalente a um lisboeta afiançar que o Porto é que vale a pena.
Despedimo-nos e metemo-nos no carro. Conduzimos cidade acima, até à casa em que iríamos ficar.
De acordo com os números de 2017 do Euromonitor, os 3.2 milhões de visitantes da capital cretense e da região representavam um aumento de 11% de turistas. Faziam de Iraklio a segunda cidade mais visitada da Grécia.
A 20ª da Europa, e 66ª do mundo.
O significado real daqueles números permanece, no entanto, envolto em polémica.
O Menosprezo Cretense de Iraklio
Os donos de restaurantes, hotéis e outros negócios turísticos queixam-se de que se devem apenas às incursões de toca e foge dos passageiros dos cruzeiros e recém-aterrados ao palácio de Cnossos e ao Museu Arqueológico.
Lamentam-se de que os visitantes tenham de Iraklio a ideia de uma urbe suja e barulhenta.
De que não valorizem a genuinidade das avenidas amplas de asfalto e das ruelas apertadas de betão (nem sequer a da marginal portuária e histórica) por lhes faltar o perfil fotogénico da vizinha do oeste… Chania.
Habituados a apreciar belezas mais rudes e decadentes, compreendemos a sua frustração e, como se poderá depreender deste artigo, esforçamo-nos para reverter tal noção.
Nos dias que se seguem, despertamos num segundo andar da rua Zacharioudaki, no lar emprestado de um jovem casal grego, ele arquitecto, ela pediatra, com um filho de dois anos, os três desprezadores da alienação televisiva.
Em sucessivos pequenos-almoços, entretém-nos a banda sonora do infantário logo em frente, feita de cantorias que as educadoras vão ensinando às crianças.
Uma Agradável Atmosfera Mediterrânea
Saímos o mais cedo possível para o afago estival, quente e seco de Creta. Tal como acontecera em Atenas, depressa o ambiente livre – passam-se cinco dias sem vermos um polícia ou carro da polícia – mas não anarca, individualista mas, à sua maneira, altruísta da cidade nos faz sentir em casa.
Em Creta, depressa nos tornamos cretenses. Criamos e consumimos saladas e mais saladas com queijo feta. Sempre que o calor nos amolece e prejudica o trabalho, comprarmos cafés gelados que saboreamos a caminhar pelas ruas e nas deslocações de carro.
Como tantas ex-crianças portuguesas e do mundo, confrontámo-nos na nossa infância com a lenda do minotauro. O imaginário e fascínio que, volvidos todos estes anos, dela preservamos foi, aliás, uma das razões para desembarcarmos em Creta e querermos explorar a ilha sem pressas.
Pois, ali estávamos.
As indicações rodoviárias que nos assistiam nas ruas e ruelas de Iraklio eram escassas mas, entre elas, contavam-se algumas, diminutas, do Palácio de Cnossos, situado a pouco mais de 10km do centro histórico.
Cnossos, o Trono de Minos
Quando, no início do sec. XX, Sir Arthur Evans desvendou as ruínas do palácio, repletas de motivos taurinos, a vastidão intrincada do complexo fez com que o arqueólogo britânico se atrevesse a sugerir que incluía o labirinto encomendado pelo rei Minos a Dédalo.
De acordo com a mitologia grega, Minos foi o primeiro rei de Creta, filho de Zeus e de Europa. Arthur Evans baptizou, aliás, a civilização minoica de acordo com este rei. Pois, entre 2700 e 1450 a.C., a civilização minoica alastrou a outras ilhas do sul do Egeu, incluindo a actual Santorini.
Tornou-se mais e mais poderosa. A determinada altura, rivalizou e combateu a civilização micénica que aumentava o seu território do continente grego em direcção aos confins insulares helénicos.
Os historiadores tendem em concordar com o facto de estas duas civilizações rivais estarem na origem da Europa em que hoje vivemos.
Se virmos bem as coisas, até o nome do continente lhes tomámos de empréstimo. E, se são demasiados os passageiros dos cruzeiros e aviões que cruzam Iraklio da beira-mar ao grande olival do interior de Creta sem ligarem a mais nada na capital, o motivo está na importância fundadora deste povo.
Como está no dramatismo mitológico da vida e morte do Rei Minos.
Na época alta estival, dia após dia, a abertura do complexo de Cnossos faz-se com uma longa fila de visitantes já à porta, composta por seguidores multinacionais atentos ao que os guias de bandeirola em riste lhes transmitem com um orgulho entusiasmado.
A Devoção Taurina do Povo Minóico
Umas poucas dezenas de metros após a entrada, à sombra de pinheiros mansos, deparamo-nos com um grande símbolo minóico de cimento, que emula os cornos de touro.
À esquerda, espreitamos uma parede com a reconstituição do fresco do “Salto sobre o Touro”, uma pintura em que dois homens – um branco, outro bronzeado – se dedicam a uma tourada minóica acrobática.
Por mais difícil de provar que seja, certos historiadores defendem que a variante forcada da tourada portuguesa, foi trazida para a Ibéria pelos Romanos que se habituaram a admirá-la depois de Roma se ter apoderado das ilhas helénicas.
Espreitamos ainda a Sala do Trono, disposta em redor de um pequeno sólio de alabastro. Mesmo não sendo o único assento nobre do palácio, Arthur Evans identificou-o como trono.
Logo ao lado, contemplamos a esquina mais famosa do complexo, o que resta do seu bastião norte, embelezado por colunas vermelhas que dissimulam um fresco de um touro ao ataque.
A prolífica mitologia grega não demorou a explorar as loucuras taurinas de Creta.
O Drama Mitológico do Minotauro
Após ocupar o trono de Creta – não necessariamente o da Sala do Trono – Minos viu-se ameaçado pelas pretensões usurpadoras dos seus irmãos.
Rogou a Poseidon que lhe enviasse um touro branco que sacrificaria em honra deste que era o deus do Mar. Só que, ao contrário do prometido, deslumbrado pela beleza do animal, Minos decidiu mantê-lo e, em vez, sacrificar um dos seus touros banais.
Como deus que era, Poseidon descobriu a esperteza. Para punir Minos, fez com que Pasífae, a esposa do monarca, se apaixonasse pelo touro. Pasífae ordenou a Dédalo, um artesão conceituado da ilha que construísse uma vaca de madeira oca.
Entrou nesse modelo e permitiu que o touro com ela copulasse. Desta rebuscada relação sexual, nasceu o minotauro, uma criatura meio-humana, meio taurina que, malgrado os cuidados maternais de Pasífae, se tornou feroz e passou a alimentar-se de pessoas.
Embaraçado pela atroz traição da esposa, pior, confrontado com o agravar da tragédia, Minos seguiu o conselho do oráculo de Delfos: mandou Dédalo construir um enorme labirinto destinado a conter e esconder o minotauro.
Mais tarde, Minos viu o seu filho Androgeus ser morto ou pelos atenienses invejosos do seu sucesso ou pelo próprio minotauro (coexistem distintas versões).
Seja qual for a prevalente, Minos entregou-se a uma guerra furiosa contra os atenienses.
E o Sucesso Dramático de Teseu
Triunfante, exigiu a Egeu, rei de Atenas, que lhe enviasse, a cada período de sete (ou nove anos) sete jovens e sete donzelas para serem devorados pelo minotauro. No terceiro desses sacrifícios, Teseu, um filho de Egeu confiante ofereceu-se para matar o minotauro.
Estabeleceu com o pai que içaria uma vela branca no seu barco caso o conseguisse.
Já em Creta, Ariadne, filha de Minos apaixonou-se de Teseu e ajudou-o a orientar-se no labirinto. Teseu abateu o minotauro e ajudou os outros atenienses aprisionados a escaparem. De regresso a Atenas, esqueceu-se do combinado, e içou uma vela negra em vez de branca.
À sua espera, o rei Egeu avistou o navio aproximar-se com a vela negra e atirou-se do cimo do penhasco para uma morte certa no mar que o continua a honrar.
A Erupção de Thira e a Aniquilação da Civilização Minoica
Por mais atroz que se revele a lenda, não chega aos calcanhares do que se crê ter sido o fim da civilização minoica. Entre 1550 e 1500 a.C. o vulcão de Thira deu origem a uma das erupções vulcânicas mais poderosas de que há registo. Fez colapsar a maior parte da ilha em redor.
Deu origem ao resto de caldeira excêntrica que nos havia deslumbrado dias antes em Santorini. Gerou ainda um maremoto que devastou o litoral de Creta e arrasou muitas das suas povoações resplandecentes, hoje, com ruínas disseminadas pela ilha.
A história de Creta e de Iraklio não se ficaram por aí. Malgrado o maremoto, o passado e a vida menosprezada da capital centram-se na mesma beira-mar de que os minoicos terão visto as vagas descomunais aproximar-se.
Creta foi árabe, bizantina, veneziana e otomana até que, enfim, se tornou grega como hoje o é.
A Iraklio Animada dos Nossos Tempos
Com o fim da tarde, os moradores e os forasteiros mais interessados afluem à Cidade Velha. Percorrem a Rua 25 Avgoustou para cima e para baixo.
Falam e discutem em alta voz, de olho nas promoções das lojas, nas esplanadas arejadas ou nos aconchegos dos muitos ouzeris, assim se chamam as tavernas tradicionais e derivadas.
As que servem os idolatrados licores ouzo e raki ou, vá lá que seja, cerveja e uma panóplia de pequenas mas deliciosas tapas gregas (mezedes) que dão mais sabor tanto à bebida como à conversa.
Ao longo da 25 Avgostou, Iraklio mostra-nos o encanto que tanto se diz em falta. Revela-nos a igreja bizantina de Agios Titos. O Loggia, um edifício da era veneziana erguido com fausto para que lá convivessem os nobres de Veneza, hoje a câmara municipal.
Logo acima, a fonte dos “Leões” da praça Eleftheriou Venizelou, o ponto de encontro mais usado da cidade.
E, numa secção não tão popular ao fim da tarde, destaca-se ainda a fonte Bembo e o sebil (espécie de quiosque) em que, durante o período otomano, era fornecida água aos moradores.
O Velho Porto e a Fortaleza Veneziana de Koules
Regressamos ao velho porto ainda protegido pela fortaleza de Koules, erguida pelos venezianos no século XVI, imagem de marca de Iraklio e a razão de ser de inúmeras pescarias e passeatas.
Vemos os ferries zarparem para outras paragens do Egeu e os pescadores tagarelarem sobre as suas traineiras garridas, ancoradas nas profundezas quase rodoviárias da marina.
Por volta das nove da noite, o ocaso desfaz-se na névoa, para ocidente do Golfo de Iraklio. À boa-moda grega e mediterrânea, a capital entrega-se de vez à celebração da vida de Creta.
Iraklio pode não transbordar de forasteiros endinheirados como Chania. Mas, por alguma razão é há muito a capital da ilha.
COMO VISITAR:
OS CELESTYAL CRUISES OPERAM CRUZEIROS NO MAR EGEU E MAR MEDITERRÂNEO DE MARÇO A NOVEMBRO, POR A PARTIR DE 539€.
RESERVAS EM www.celestyalcruises.com e pelo telf.: +30 2164009600.