Partimos da capital Torshavn quase tão cedo quanto tínhamos planeado e de sobreaviso para a eventualidade de o pequeno ferry que liga Klaksvik – a segunda cidade da nação – à ilha vizinha de Kalsoy poder não chegar para todos os candidatos.
Às 8h45, decorrida de mais de uma hora de viagem pela alpondra geológica de que são feitas as Faroés, ainda debaixo de chuva, chegamos ao porto. Somos os terceiros na fila de veículos por embarcar.
Com um lugar tanto no pódio como no barco assegurado, ensonados de cansaço e de mais um despertar madrugador, deitamos os bancos, activamos os despertadores dos telefones e deixamo-nos dormir.
Quando voltamos a despertar, pouco antes das dez, já estão sete carros na fila do ferry M/F Sam, ainda bem longe do limite de dezasseis. Todos eram alugados, conduzidos por estrangeiros. Estacionamos o nosso consoante as intruções do arrumador de serviço. Logo, subimos para a plataforma destinada aos passageiros e ao comandante.
A Travessia Suave para Kalsoy, a Bordo do Ferry M/F Sam
O M/F Sam, uma espécie de balsa artilhada, faz-se ao mar liso que preenche o fiorde em que se instalou a cidade. Deixa para trás a ilha de Bordoy e dá início à travessia para Sydradadur, o porto de destino já na ilha de Kalsoy. Navegamos por águas protegidas pelos caprichos insulares do território faroês que a quase ausência de vento mantinha lisas.
Apreciamos o casario de Klaksvik enquanto a distância e a névoa o reduzia a um quase nada. Quando essa mesma longura tornou as margens difusas, fazemos uma visita à ponte de comando.
Uma mulher de feições asiáticas tagarelava com o comandante em faroense, num diálogo arrastado que nos deixava mais e mais intrigados. Por fim, a senhora pressente que também queríamos falar com o comandante e aborda-nos em jeito de passagem de testemunho proselitista. “Vão a Kallur, certo? Ao meio-dia, há missa em Mikladalur. Se puderem, juntem-se a nós.” Agradecemos o convite mas ficamo-nos por aí.
A Ligação Faroense-Portuguesa do Comandante Sámal Petur Grund
Abordamos o comandante, um homem sessentão de cabelo e bigode brancos e olhos de um azul bem vivo. Sámal Petur Grund, assim se chamava, não perde tempo a apurar de onde vínhamos. “De Portugal? A sério? Não vemos cá muitos de vocês! Sejam bem-vindos.
Sabem que eu tenho uma enorme admiração por Portugal, aliás… até é possível que eu exista devido a Portugal. Porquê? Olhem, durante os anos 60 e 70 o meu pai fez a vida dele a pescar bacalhau aqui nas Faroé, na Islândia e na Gronelândia e a ir vendê-lo a Portugal.
Ele já não está vivo mas, pelo que sei, vocês continuam a comer bacalhau em quantidades incríveis.” Confirmamos a sua suposição e prolongamos a conversa o mais que podemos. Não muito.
De Sydradadur a Trollanes, túnel atrás de túnel
Sydradadur aproximava-se. O comandante viu-se na iminência da atracagem E, nós, na urgência de descermos para o carro a tempo de desembarcarmos e desbloquearmos os restantes.
Uns minutos depois, já percorríamos a estrada costeira que segue da ponta sul ao extremo norte da ilha, numa caravana espontânea formada por todos os carros que seguiam a bordo.
À imagem de tantas outras ilhas do arquipélago, sucessivos movimentos tectónicos e a erosão enrugaram a delgada Kalsoy. Como tal, só uma sucessão de túneis rústicos de montanha nos permitia a todos chegar a Trollanes, a última paragem da estrada e o ponto de partida para a caminhada que estávamos prestes a inaugurar.
Um derradeiro túnel deixa-nos de frente para um vale amplo e verdejante. Trollanes surgia anichada num recanto à beira-mar. Prendados com uma meteorologia bem mais favorável que a que tínhamos tido até então, decidimos deixá-la para a volta.
A Caminhada Deslumbrante-Verdejante entre Trollanes e Kallur
Detemo-nos num parque de estacionamento instalado junto ao início do caminho para Kallur, um trilho meio enlameado que começava por trepar uma encosta por degraus naturais.
Pausamos a marcha no cimo dessa primeira vertente. Daí, contemplamos o vale e o litoral rugoso em formato panorâmico. Vislumbramos ainda os contornos longínquos de Kunoy, a ilha a leste, perdidos na vastidão do Mar da Noruega.
Retomamos o trilho. Por um bom tempo, ondula por nova meia-encosta até que passa a ascender para as alturas costeiras que buscávamos. Nesse tempo, como é suposto nas ilhas Faroé, cruzamo-nos com ovelhas entregues às suas intermináveis pastagens.
Umas são pretas, outras castanhas, outras cinzentas, outras de um branco-bastante-sujo e outras ainda malhadas. Habituadas às incursões dos estrangeiros por aquele domínio, os ovinos desprezam-nos. Ao contrário dos quase tão abundantes ostraceiros que desatam numa guincharia infernal sempre que nos aproximamos dos seus ninhos.
O Farol de Kallur, por fim, à Vista
Vencida nova ladeira, enfim, damos com o farol branco e vermelho de Kallur. Ao contrário do que esperávamos, a estrutura impressionou-nos pela sua insignificância, como que rendida à grandiosidade ervada e recortada, rochosa e marinha do cenário em redor.
De um momento para o outro, a ponta noroeste de Kalsoy ganha braços de terra que entram pelo mar em distintas direcções. O farol surge numa orla com precipícios mortais tanto para um lado como para o outro. Já tínhamos lido sobre os perigos e riscos da exploração de Kallur. Ainda assim, a vertigem surpreendeu-nos.
Não fomos os primeiros passageiros do M/F Sam a ali chegar. Um jovem casal britânico fazia as suas fotos a alto ritmo, pressionado pela forte probabilidade de as nuvens baixas retidas pelo penhasco meio-rochoso meio-ervado que se destacava acima do farol nos emboscarem.
Dez minutos decorridos, vemo-los deixarem o istmo elevado em que se situava o farol e a percorrerem uma crista concorrente, bem mais longa. Aproveitamos de imediato a nossa vez.
Pé ante pé, com tanto cuidado como receio e a evitarmos espreitar os precipícios que nos ameaçavam de ambos os lados, chegamos à ponta destacada e quase tão vertiginosa, de onde era possível fotografar o farol com o tal penhasco em fundo.
Mas, umas poucas fotos frenéticas depois, as nuvens começaram mesmo a entrar e a despejar uma chuva se intensificou. Lembrámo-nos de imediato que, se a ida já tinha sido complicada, o que seria então o retorno com a névoa e o aguaceiro a esconderem e a enlamearem ainda mais aquele fio da navalha escorregadio.
Os Complicados Caprichos Meteorológicos de Kallur
De acordo, com o mesmo cuidado com que havíamos vindo, mas com as pernas já a tremer da adrenalina, revertemos o caminho para o farol. Abrigamo-nos atrás da sua fachada protegida da chuva, recuperamos a calma e esperamos.
No entretanto, chega um casal chinês com uma criança e apercebem-se de que não se vê nada em redor. Aguardaram cinco minutos e desistem.
Pela experiência meteorológica que já levamos de tantos anos de viagem e de fotografia, tínhamos uma certeza quase absoluta que aquelas nuvens rasteiras não resistiriam muito mais. Tal prognóstico veio a confirmar-se.
Uma brisa súbita levou o manto branco para cima do mar e deixou as nuvens que se seguiam uma vez mais retidas atrás do penhasco.
Sós naquela batalha contra o tempo e os elementos, recuperámos a coragem. Mesmo se escorregava já o dobro, voltamos a desafiar o trilho letal. Por sorte, as nuvens hesitaram por quase quarenta minutos. Nessa clemência, fizemos todas as fotos que queríamos: a partir do tal pedestal, do farol e até do declive abaixo que a inclinação parcial e a cobertura de relva nos permitia descer uns bons metros sem cairmos para uma morte marinha mais que certa.
Regresso à Segurança Rural de Trollanes
Mal a névoa retomou a invasão, rendemo-nos às evidências. Arrumámos o equipamento nas mochilas e inaugurámos o regresso a Trollanes.
Quando lá chegamos, já não vemos rasto dos restantes estrangeiros. Espreitamos uma plantação murada de ruibarbo, o único vegetal que os faroenses conseguem cultivar ao ar livre. Passamos por uma casa tradicional de madeira em que víamos os moradores pela janela da cozinha, como eles nos conseguiam ver a nós.
Cá fora, alinhados sobre a caixa de uma carrinha pick-up, quatro cães pastores das Faroé, aguardavam impacientes que os donos deixassem o lar e os levassem para a lida das ovelhas da sua satisfação.
Até então, não tínhamos encontrado nenhum dos 75 habitantes de Kalsoy que decidimos não desperdiçar aquela oportunidade. Sem que o esperássemos, uma criança com os seus três ou quatro anos surgiu da casa. Os cães sentiram que os donos estariam prestes a chegar e começaram a ladrar.
A criança assustou-se com a nossa inesperada presença fotográfica e com o frenesim dos cães. Regressou à protecção do lar.
Nós, aproximamo-nos dos cães e tentamos fazer-lhes festas. Só que, espertos como são estes cães-pastores, por aquela altura já teriam percebido que estávamos a perturbar a rotina da saída dos donos para o campo. Um deles irritou-se e ameaçou uma mordidela. Ficaram por ali as festas.
Boa parte dos faroeses rurais são algo avessos aos turistas que invadem as suas povoações de máquinas fotográficas em riste. Esta família não saiu sequer de casa enquanto por ali cirandávamos.
Investigamos um pouco mais da ínfima Trollanes e encantamo-nos com um galinheiro de pedra que um bando de galináceos apreensivos contornava numa direcção e na outra, consoante a fachada de que aparecêssemos.
Logo, deixamos o vale de Trollanes ao som da banda sonora estridente de seis ou sete ostraceiros que reclamavam a exclusividade da sua beira da estrada.
Em Busca da mulher-foca de Kópakonan
Retrocedemos para o sul de Kalsoy, com as horas contadas para apanharmos a última travessia do dia do M/F Sam rumo a Klaksvik.
Pelo caminho, paramos em Mikladalur, a maior das povoações da ilha, também ela situada num grande vale em forma de U. Já não chegámos a tempo da missa para que a passageira de visual asiático nos convidara.
Em vez, descemos para a beira-mar profunda da aldeia e apreciamos a estátua anfíbia que justificava a paragem de quase todos os visitantes.
A maré estava vazia. O mar mantinha-se relativamente calmo tendo em conta a ondulação tresloucada que batia aquele litoral feito de penhascos nos piores dias de tempestade. Kópakonan, a mulher foca, destacava-se, assim, a seco, da base de rocha que a sustem, tão sólida como a tradição das lendas folclóricas das ilhas Faroé.
A sua estátua homenageia, aliás, uma das lendas mais conhecidas e intrincadas da nação, de tal forma complexa e longa que teremos que a contar da próxima vez que voltarmos a Kalsoy.