Estávamos por Mérida pela segunda vez.
Em Dezembro de 2004, a cidade acolhia centenas de jovens viajantes e expatriados. Atraíam-nos as caminhadas e actividades radicais nos cenários preservados da Sierra Nevada, no extremo norte da grande cordilheira sul-americana que, em 1960, a construção do sistema de teleféricos local tornou mais procurada e acessível que nunca.
Mas, ao aproximar-se dos 50 anos de vida, o sistema de teleférico recordista (12.6km de extensão dos 1640m aos 4765m de altitude) chegava ao fim da sua vida útil.
Em 2008, o grupo austríaco Doppelmayr entregou ao Ministério do Turismo venezuelano um relatório que recomendava que não deveriam ser feitas mais reparações. Em Agosto, o serviço do teleférico foi encerrado sem prazo de reabertura. Com óbvio dano para a economia de Mérida, habituada às verbas ali deixadas pelos forasteiros.
Passaram-se quase dois anos. Nesse período, a empreitada de reconstrução foi entregue à Doppelmayr.
No fim de 2010, iniciaram-se os trabalhos que ainda prosseguiam a meio de Outubro de 2013, em simultâneo com a FITVEN 2013, a feira internacional que o Ministério de Turismo atribuiu a Mérida, com o propósito principal de reconquistar notoriedade para a região e para o novo teleférico.
A Ascensão ao Pico Espejo a bordo do Teleférico em Renovação
Numa de várias manhãs soalheiras, madrugamos com o objectivo de contribuirmos. Viajamos do limite da cidade até à calle 24 Rangel e ao Parque Las Heroínas. Devido à inactividade do teleférico e à situação instável da Venezuela, encontramo-la sem sinal da vida cosmopolita e frenética que lhe conhecíamos.
Uma comitiva de responsáveis pela obra, pela comunicação do projecto e da Protecção Civil acolhe-nos. Aguardamos com vista para o vale abrupto em que flui o rio Chama e para a encosta imponente da Sierra Nevada de Mérida.
São exaustivas tanto as boas-vindas como os briefings informativos e de segurança. Superados os pró-formas, o grupo é dividido, dotado de capacetes e conduzido à doca de acostagem dos monta-cargas usados na obra.
Reparamos que José Gregório Martínez, o presidente da empresa Venezuelana de Teleféricos, anda de braço ao peito. Tentamos não ver no seu gesso um prenúncio e subimos a bordo da primeira caixa de ferro que ali aporta. Colocadas as correntes que separam os 16 passageiros do abismo, ficamos entregues ao destino.
O monta-cargas sobe com um ruído estridente. Primeiro sobre o casario abarracado às margens do rio Chama. Logo, sobre a vegetação exuberante do sopé da serra. O avanço não é contínuo. A espaços, a cabine detém-se e deixa-nos apreensivos e em silêncio. “Tivemos um furo”, não resiste a atirar Júlio Debali, um uruguaio em permanente modo humorístico.
Ao riso, volta a suceder-se o silêncio. Jayme Bautista, o mais incansável dos comunicadores anfitriões, sente o desconforto partilhado. Pede a um outro funcionário que explique o porquê de tão suspeita imobilização.
Este, entrega-se a um ensaio verborreico inspirado na fluência insípida dos superiores e responsáveis que se acostumara a escutar: “Muy bueno, les comento el seguiente: el detalle és que la torre que acabamos de passar, la N, tiene cables en posición negativa, de la manera como estan, hacen fuerza para arriba y tienen que equilibrarse con la torre. Por eso és que hay que pasar despacio, porque sino se puede descarrilar.”
O grupo pouco ou nada compreende. Indiferente, Júlio Debali aproveita para acrescentar outras das suas sempre bem-vindas piadolas cirúrgicas. “OK. Mas tem pára-quedas isto?”
O susto passa. Não tardamos a sair para a primeira estação.
A Pé, Montanha Acima, Rumo à Loma Redonda da Sierra Nevada
Desembarcados, vencemos trechos pedestres. Atravessamos distintos estaleiros de obras e cruzamo-nos com trabalhadores espantados pela inesperada invasão. Até que chegamos à antiga estação de Loma Redonda. Dali, tentamos localizar o Pico Bolivar (4981m), o tecto da Venezuela.
Os cumes da Sierra Nevada revelam-se ligeiramente nevados e na iminência de se sumirem nas nuvens que espreitam por detrás. Caminhamos entre incontáveis frailejónes (Espeletia pycnophylla), com vista para as lagoas Los Anteojos, assim chamadas pela similitude com um par de óculos.
Em três monta-cargas distintos, numas dezenas minutos, tínhamos subido dos 1600 metros de Mérida para cima dos 4000. Além de gélido, o ar revelava-se rarefeito a condizer. Faltava ainda a ascensão para as alturas agrestes do Pico Espejo.
Este trecho derradeiro foi o único realizado num monta-cargas fechado, também à pinha. Provou-se bem mais extremo que os anteriores.
O Mal-da-Montanha de Que nem a Virgen de Las Nieves Salva o Grupo
Desembarcamos para um trilho enlameado e nevado. Avançamos, em ritmo lunar, até ao miradouro abençoado pela estátua da Virgen de Las Nieves, a patrona dos montanhistas. Dali, para baixo, envoltos numa névoa veloz, não percebemos sequer o abismo, apenas os rochedos imediatos que o anunciam.
No regresso ofegante e zonzo ao monta-cargas, Henry Toro, um guia com visual indígena, ele próprio ex-montanheiro, apresenta-nos Jesus López.
Louva esta figura da renovação do teleférico e de outros projectos na montanha que admirava em especial, entre todos os trabalhadores: “O pessoal conhece-o como Yeti, vejam lá, tal é o tempo que este homem passa aqui em cima.”
De um varandim próximo, avistamos aquela que é considerada a praça mais elevada da Venezuela. E a estátua do comandante-supremo Francisco de Miranda, um dos grandes libertadores e heróis históricos dos venezuelanos, a par do seu sucessor, quase-divino Simón Bolívar.
Estávamos havia quase meia-hora a 4765 metros, desprovidos de uma aclimatização prévia condigna. Tal como a Protecção Civil previa, alguns dos visitantes já se ressentiam. O regresso no monta-cargas teve, assim, que ser abreviado. De volta à Loma Redonda, os cérebros em apuros tiveram que ser oxigenados.
Loma Redonda era a estação de onde, em 2004, havíamos iniciado a caminhada montanha abaixo em direcção a Los Nevados.
O Regresso Abreviado à Segurança de Mérida
Nessa ocasião, um pequeno batalhão de proprietários de mulas habitantes dos pueblos em volta alugava os seus animais e serviços aos passageiros recém-chegados de Mérida. Quando desembarcamos, percebemos que o Ministério do Turismo venezuelano lhes tinha devolvido essa missão para que transportassem a comitiva de visita.
Percorremos de mula apenas a parte inicial do trilho que conduzia ao pueblo ainda distante.
O suficiente para nos recordarmos do resto do caminho e convencermos Jairo Alarcón – um dos nativos trajado a rigor e mais fotogénico – a protagonizar uma curta sessão fotográfica.
A tarde já vai a meio. Desmontamos. Pouco depois, damos início à descida. Interrompemo-la para um almoço tardio no refeitório dos trabalhadores, instalado na terceira estação.
Após o repasto, ouvimos uma longa apresentação sobre o teleférico e instalamo-nos para assistir à projecção de um filme.
Henry Toro adianta-nos que muitos dos trabalhadores tinham chorado de emoção quanto assistiram a “En lo Más Alto” pela primeira vez.
Nuns poucos minutos, sentimos como o documentário, épico e nacionalista, elevava o significado das suas contribuições.
Estava em causa o teleférico mais longo e mais alto do Mundo que a sempre conturbada Venezuela estava determinada a refazer.