Tínhamos terminado uma viagem ferroviária com que há muito sonhávamos, a bordo do tren El Chepe (Ferrocarril Chihuauha al Pacífico), entre Creel e Los Mochis, através das Barrancas del Cobre, das terras planas e semi-desérticas de Sinaloa.
Despertados em Los Mochis, vemo-nos a braços com a indefinição do que faríamos em seguida. Prolonga-se para lá de uma hora de check out que fizemos esticar.
Regressamos de um almoço de burritos, almoçado a pouca distância da casa em que o líder do cartel de Sinaloa, El Chapo, foi capturado.
Ao reentrarmos no Hotel Balderrama de Los Mochis, cruzamo-nos com Bernardo Balderrama, o dono da cadeia, que nos lembrávamos de nos ter abordado, dias antes, numa feira turística. “Esperem lá… nós conhecemo-nos, certo?” questiona-nos.
Pensamos um pouco para termos a certeza e confirmamo-lo. “Ah, sim, já me lembro. Então gostaram do nosso hotel lá nas Barrancas del Cobre? E da viagem de comboio? É incrível, não é?”
Conversa puxa conversa, quando lhe explicamos o impasse em que estávamos, convida-nos para passarmos umas noites num outro hotel Balderrama, o de El Fuerte.
Tínhamos por lá passado, no quase fim do percurso sobre carris do comboio El Chepe.
Sabíamos que muitos passageiros escolhiam lá começar ou terminar a viagem, para ficarem a conhecer a cidade, colonial, elegante e com uma história prolífica.
Aceitamos de imediato.
Às quatro e meia, entramos numa carrinha. Guiava-a um funcionário de nome Salvador.
Cumprimos boa parte do percurso já de noite, com a companhia de dois polícias de trânsito a que Salvador se viu forçado a dar boleia.
A Pousada Hacienda del Hidalgo, Portal Histórico para El Fuerte
Damos entrada em El Fuerte e na Posada Hacienda del Hidalgo já depois das seis da tarde. Jantamos, investigamos o centro histórico, que encontramos mais escuro do que estávamos a contar.
Num estado mexicano de cartéis e inúmeros sucedidos à margem da lei, depressa regressamos à segurança da Posada e nos entregamos a tarefas de escritório.
Novo dia. Pelas 10h, toca-nos à porta Miguel Ángel León, gerente da posada. Miguel dá-nos as boas-vindas.
Tinha que sair dentro em pouco. No tempo que lhe sobrava, faz questão de nos mostrar o que a Posada Hacienda del Hidalgo tinha de especial, além da sua surreal beleza colonial.
Ao passarmos para o jardim para que dava o quarto, reparamos, de imediato numa estátua de bronze, de chapéu a cobrir quase toda a cara e uma espada em riste. “Zorro? Porque é que aqui têm uma estátua dele?”
Ah, vocês ainda não sabem? Já vos explico tudo.
E, ao jantar, levem as câmaras, para fotografarem e filmarem.
Daquela surpresa e incredulidade, aos poucos, rendemo-nos à cada vez mais estranha realidade.
“Sigam-me! Vou-vos mostrar o nosso quarto mais importante, o 46.” Instantes depois, examinávamos uns aposentos que Miguel afiançava serem onde tinha nascido Diego de la Vega, o “Zorro” não disfarçado de Zorro.
Já atrasado, Miguel deixa-nos ao cuidado de uma empregada.
Continuamos a cirandar pela hacienda, maravilhados com a sua combinação de arquitectura e decoração, uma espécie de quimera colonial convertida, ajustada e aprimorada desde a génese militar da propriedade, datada do século XVII.
Uma de tantas outras haciendas exuberantes que continuam a embelezar o México.
A Fundação da Predecessora da Cidade, há quase Meio-Milénio
A povoação colonial pioneira surgiu um bom tempo antes, em 1563.
Fundou-a, baptizada de Villa de San Juan Bautista de Carapoa, Francisco Ibarra, conquistador basco, o primeiro europeu a aventurar-se pelas montanhas da Sierra Madre Ocidental. Também fundador de Durango e governador de Chihuahua.
Por volta de 1610, a povoação mantinha-se vulnerável aos ataques constantes dos indígenas Zuaque e Tehueco que durante séculos dominaram aquelas terras, que deixaram inúmeros registos rupestres.
Que estão presentes, em termos genéticos em boa parte dos habitantes mestiços da região
Ibarra ordenou a construção de um forte à beira do rio Fuerte.
Esse forte – El Fuerte de Montesclaros – congregou os colonos em redor da sua protecção e do sustento que o rio Fuerte garantia.
Com o decorrer dos anos, tornou-se o mais importante entreposto agrícola e comercial do imenso Noroeste Mexicano.
E, em 1824, capital do estado de Sonora y Sinaloa.
O termo simplificado El Fuerte, passou a ser o usado, em vez dos mais longos anteriores.
Diego de La Vega. Filho de Alejandro de La Vega. E de El Fuerte
Diego de La Vega surge neste contexto. O seu pai, Alejandro de La Vega, filho de espanhóis, já nascido no México, era casado com uma mestiça (meio espanhola, meio indígena).
Dessa relação, em 1795, nasceu o filho Diego. Alejandro de La Vega tinha transformado, na mansão da família, uma velha guarnição na colina de Garapoa que as autoridades espanholas haviam abandonado.
O parto terá, supostamente, acontecido no quarto 46 que nos mostrara Miguel Ángel.
Fluem nove anos da vida de Diego de La Vega em El Fuerte. A sua mãe falece. A mineração em que o pai Alejandro tinha investido deixa-os a ambos em apuros.
Desiludido com o que o destino lhe reservava na povoação, Alejandro muda-se para Los Angeles, cidade da então província mexicana da Alta Califórnia.
El Fuerte deixou de ter novidades dos De La Vega. Décadas depois, chegaram relatos. De tal forma espantosos que justificaram a estátua no jardim em frente ao quarto. E muito mais.
À Descoberta de El Fuerte
Saímos para o cerne histórico da povoação.
Encontramos a praça central a que os mexicanos chamam Zócalo, disposta em redor de um jardim desafogado, à boa maneira colonial mexicana, dotado de um coreto.
Despontam palmeiras imperiais portentosas, com copas verdejantes que contrastam com o ocre dos tijolos do imenso Palácio Municipal, onde a cidade é gerida.
Serve El Fuerte um trenzito turístico que leva famílias e namorados a conhecerem a cidade.
Vemo-lo passar e soar a sua melodia contagiante, enquanto subimos a ladeira da Pousada Hidalgo, a caminho do antigo forte militar.
O Velho Forte que Inspirou o Baptismo
Foi esta a estrutura que inspirou o nome do pueblo.
Hoje, acolhe um museu histórico cuidado, disposto sob adarves com vistas desafogadas.
Do seu cimo, admiramos o rio Fuerte, logo em frente, a serpentear num oásis imenso.
Na direcção da costa do Pacífico, para lá da mancha verdejante, vemos ainda o deserto plano.
Na direção oposta, temos o vislumbre das encostas da Sierra Madre Ocidental.
Tão fotogénico como histórico, o forte serve de cenário aos mais distintos propósitos.
Guarnece uma aturada sessão de fotos de Nallely, uma quinceñera bonita e orgulhosa.
As amigas compõem-lhe o vestido roxo, o bouquet de flores e a tiara que a coroa.
Fotografam-na diante das muralhas, de um grande cacto saguaro, e em trajes de vaqueira, sobre um cavalo irrequieto.
Naquele deambular, voltamos a passar pelo Zócalo.
A igreja de Dolores acolhe uma qualquer cerimónia católica.
Familiares e convidados chegam nos seus melhores trajes.
Fazem fila diante da porta.
Nas arcadas opostas, uns poucos forasteiros, mexicanos e gringos, conversam, massajados pelo sol invernal.
Não tarda, anoitece. Regressamos à Posada Hacienda del Hidalgo.
A Reaparição Teatral de El Zorro na Hacienda que o viu Nascer
Sobre a hora marcada, sentamo-nos numa mesa em redor da piscina, a jantar. A meio da refeição, sem aviso, irrompe um vulto trajado e mascarado de negro.
Como tinha prenunciado Miguel Ángel, irrompe El Zorro, de espada em riste, munido de um lote de piadas e de um charme namoradeiro que dedica às mulheres presentes, ao ponto de raptar para a cena, duas hóspedes solteiras.
A Hacienda del Hidalgo celebrava, assim, a sua relevância numa personagem que conquistou notoriedade mundial. Cabe-nos explicar de que forma.
Ora, na vida adulta passada na Alta Califórnia, Diego de La Vega tornou-se um justiceiro anónimo.
Quando as autoridades espanholas e, mais tarde, mexicanas, oprimiam e abusavam dos súbditos pobres e indefesos, atacava, roubava os responsáveis, repunha a justiça e a sua dignidade.
El Zorro: da Alta Califórnia para os Livros, os Ecrãs e o Mundo
Com o tempo, a personagem de El Zorro tornou-se lendária. Deu origem a obras literárias. A primeira aparição do mascarado do Z deu-se no romance “O Sinal do Zorro” do norte-americano Johnston McCulley, de 1919.
No ano seguinte, o sucesso do filme mudo que adaptou a história fez com que o realizador convencesse McCulley a escrever mais e mais aventuras. McCulley prolongou a vida a El Zorro por mais de quarenta anos, divididos por cinco séries principais e cinquenta e sete contos e episódios.
De 1919 em diante, surgiram várias outras obras literárias, incluindo BD, peças de teatro e séries de rádio. Um dos romances mais eloquentes a que a lenda deu origem foi “Zorro: começa a lenda” de Isabel Allende.
Estrearam-se ainda 40 filmes em torno de El Zorro.
Representaram-no estrelas como Alain Delon, Anthony Hopkins e António Banderas, os dois últimos, em “A Máscara do Zorro”, de 1998.
Noite após noite, Miguel Ángel León, também gerente, empenhava-se para cativar os hóspedes e manter vivo o papel da Posada Hacienda del Hidalgo na lenda.
De uma coisa estamos certos: conquistadas, agarradas e beijocadas a fingir pelo enigmático filho da casa, as mulheres presentes nunca mais se esquecerão.
Nem de El Fuerte nem do seu Zorro regressado a casa.