Estamos em plena época seca de Moçambique.
Despertamos com mais um dia radioso. Nuvens, só uma caravana de cumulus e stratocumulus desprovidas de humidade e que branqueavam o Inverno soalheiro deste oriente africano.
Percorremos a avenida Marginal, pelo norte da península por que se espraia Pemba.
A estrada curva sob um vértice aguçado da costa, aquém de um recife do Canal de Moçambique que ali tornava o mar raso e arenoso.
Detemo-nos no cimo de uma falésia rochosa. Nesse preciso momento, um grupo de pescadores conduz as suas canoas coloridas ao areal.
Lá os espera outra comitiva, munida de baldes e de alguidares, dos receptáculos para os peixes e os polvos que os pescadores trazem a bordo.
São mulheres de lenços à cabeça, com capulanas folclóricas da cintura para baixo.
São também alguns jovens em trajes com pouco de tradicional, camisetas de equipas de futebol, calções a condizer e chinelos.
Aquela transação piscatória faz-se numa base diária pelo que há pouco a discutir. Num ápice, os compradores colocam os baldes e alguidares à cabeça e somem-se para o cerne das suas vidas.
Os vendedores, levam as canoas a ancorar do lado de lá da baía.
Reajustamos o olhar para um areal que a maré vazia ainda descobria e que o sol dourava sempre que nele incidia.
Ali, dois rapazes disputavam uma partida de baliza a baliza com uma entrega de final de Champions.
Para diante, alguns pequenos dhows deslizam sobre a água esmeralda, com um rumo similar aos das canoas.
Descemos para o sopé da falésia. Verificamos que, afinal, uns poucos compradores continuavam à sua sombra.
Uma jovem mãe com um bebé adormecido sobre o peito.
E um homem a seu lado que, para nosso espanto, desenrola um polvo com tentáculos da sua cabeça aos pés.
Percebemos que a pescaria não tinha chegado para todos.
Além deste casal, três jovens chilavam, refastelados. Intrigados quanto a de onde tinham saído os muzungos, prendam-nos com sorrisos tímidos. Esclarecem-nos que esperavam que outros pescadores dessem à costa.
Regressamos ao cimo decididos a prolongar o privilégio panorâmico. No entretanto, o trânsito de pedestres e de embarcações a cruzar as águas rentes tinha aumentado.
Mais canoas e dhows diminutos confluíam para um mesmo ancoradouro natural, organizado em frente à primeira vaga do casario e dos coqueiros do bairro de Paquitequete.
Lá prosseguimos à descoberta de Pemba.
É sexta-feira. Quase sobre as dez da manhã, o calor aperta.
Mesmo assim, mal chegamos ao pelado no âmago da povoação damos de cara com três jogadores equipados a rigor com as cores da sua equipa: camisola amarela, calções de um roxo brilhante.
Preparam-se para uma espécie de derby local. O tempo fotográfico que nos concedem é curto e não dá direito a descontos.
Chegam mais jogadores, uns da mesma equipa, outros rivais, em qualquer dos casos, abençoados pela mesquita Aqswa que, atrás de todos, se projecta acima do casario.
Os moradores de Paquite, como é tratado o bairro de maneira a encurtar a trabalheira de o chamar pelo nome completo são, na sua maioria muçulmanos.
Como é a população de Pemba em geral, sem prejuízo da diocese e das igrejas católicas junto ao âmago administrativo da capital de Cabo Delgado.
A zona de Pemba já era muçulmana contava-se mais de meio milénio aquando da passagem pioneira de Vasco da Gama por estas paragens, em 1492, diz-se que por ilhas do arquipélago das Quirimbas.
Era muçulmana, de forte influência suaíli e falante do dialecto quimuâni que o quase meio milénio de colonização portuguesa nunca fez desaparecer.
Pois, passado todo este tempo, a mesquita de Paquite, Pemba e as gentes do norte de Cabo Delgado veem-se aflitos com um desvario jihadista (mal) disfarçado de fé islâmica.
Explicações de especialistas em assuntos africanos afiançam que o problema começou após líderes muçulmanos se terem deixado radicalizar por ensinamentos da corrente salafita, vigorosa na Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Qatar.
Ora, o salafismo e os seus ensinamentos são avessos ao Cristianismo, ao animismo, aos valores do ocidente e até de um Islamismo mais equilibrado.
Agravou-se, depois do seu regresso, quando rebeldes armados por eles instigados, chegaram a invadir mesquitas tradicionais e a ameaçar crentes de morte caso não aderissem aos ideais radicais que defendem.
Estes insurgentes, confrontaram-se com a resistência de muftis moderados e da população em geral, em aceitarem uma fé e vida muçulmana submetida ao salafismo.
A determinada altura desse processo insurgente, impôs-se na região a Ansar al-Sunna (Apoiantes da Tradição), uma facção dissidente.
A ela se juntaram elementos que se dizem representantes do ISIS, estima-se que somalis, tanzanianos, ugandeses, congoleses e outros.
Como resultado terrorista prático, desde Outubro de 2017 que se repetem ataques a estações de polícia e outras entidades estatais, a igrejas, a aldeias e povoados indiscriminados, ataques cada vez mais destrutivos e sanguinários.
Aconteceram primeiro na cidade de Mocímboa da Praia e aldeias em redor. Apesar de respostas militares ocasionais e mal coordenadas das forças policiais e armadas moçambicanas, reforçadas por outras de empresas privadas sul africanas e russas, o território controlado pelos dissidentes aumentou.
Em 24 de Março 2021, Palma sofreu a mais devastadora das investidas. Este ataque brutal causou um número ainda por determinar de vítimas, algumas estrangeiras. Deixou cadáveres decapitados nas ruas, a serem comidos por animais.
O ataque a Palma colocou travão nas operações de extracção de gás natural do campo Rovuma ao largo. Gerou novo fluxo de refugiados que procuraram chegar a Pemba por todos os meios.
Neste tempo, as autoridades moçambicanas encerraram mesquitas que consideraram radicalizadas. Outras, permaneceram abertas e moderadas.
Contribuíram para o acolhimento dos cerca de 700 mil refugiados que continuam a afluir a Pemba por todos os meios.
A pé, alguns após caminharem mais de 100km com filhos e uns poucos pertences às costas. E a desembarcarem de canoas, dhows e outras embarcações sobrelotadas nas praias em redor.
Também as igrejas na cidade alta de Pemba são, agora, centros de acolhimento cobertos, no âmago de campos de tendas improvisados que aumentam de dia para dia e que reforçam a noção de que, à imagem das embarcações, também Pemba já ultrapassou o seu limite.
O que não surpreende se tivermos em conta que, em tempos normais, a cidade abriga apenas 140 mil moçambicanos.
Ainda nos custa a crer – quanto mais a compreender e a interiorizar – todo o cenário atroz de que nos inteiramos pelas sucessivas más notícias.
Em Julho de 2017, quando, na sequência de Paquite, ascendemos à descoberta da cidade alta, nada em Pemba nos permitia imaginar a sua actual realidade.
Sob o calor seco que o sol quase a pique intensificava, encontrámos essa secção de Pemba, sobranceira a Paquite, quase deserta, com uma atmosfera mais que tranquila, sedativa.
A igreja Maria Auxiliadora permanecia fechada, sem sinal de fiéis, com a fachada acastanhada a recortar o céu azulão.
Um ou outro transeunte passava em frente à catedral de São Paulo, sem pressas.
A biblioteca provincial estava entregue à estátua insinuante de Samora Machel, percursor marxista e primeiro presidente da independência de Moçambique.
Na Pemba sucessora da Porto Amélia colonial, ainda repleta de legado arquitectónico e administrativo português, só o sector envolvente da Rua Comércio, contíguo ao porto de que chegam os bens (e, agora, milhares de refugiados) destoava da apatia vigente no píncaro da cidade.
Hoje, ao contrário de então, vítimas do colapso económico que acompanha a pandemia Covid 19 e a crise dos refugiados, os donos das lojas afiançam que faz cada vez menos sentido mantê-las abertas.
Voltemos ao contexto por que viajámos por terras de Cabo Delgado, em vésperas da desgraça que se viria a instalar.
Da parte da tarde, percorremos a Avenida Marginal no sentido contrário. Almoçamos num tal de Pieter’s Place.
Em seguida, calcorreamos a praia imediata, para cá e para lá, em busca dos embondeiros majestosos que por ali se insinuam ao Canal de Moçambique, como que a acenarem aos vizinhos malgaxes.
Sobre o ocaso, chegamos à praia do Wimbe.
O areal vasto e alvo e as águas translúcidas deste litoral sedutor promoveram-na a recreio balnear supremo de Pemba.
Para sorte de uma comunidade de empresários do turismo e insatisfação da maior parte dos pembenses que se que queixam que, à conta da fama da praia, o custo de vida da cidade se tornou incomportável.
Àquela hora nada disso interessava.
Wimbe estava entregue ao frenesim juvenil que sempre ali precede o ocaso.
Adolescentes disputavam uma partida aguerrida de futebol com a floresta de coqueiros residente como limite estimado do campo.
Outros, mais novos partilhavam um longo êxtase balnear, a mergulharem e a chapinharem nas vagas que o arredondado da enseada fazia mansas.
Dois ou três desses banhistas reparam que por ali andamos de máquina fotográfica.
“Olha aqui, muzungo, olha para nós! “garantem, assim, a nossa atenção. Num ápice, enfarinham-se e douram-se de areia, em jeito de máscaras mussiro improvisadas.
Noutro, geram uma pilha humana sorridente que quase se nos enfia pelas objectivas adentro.
Em Julho de 2017, Pemba vivia toda esta felicidade e muita mais.
Que Deus, seja muçulmano, cristão ou de outra fé, a poupe.