Os moinhos da Portela ficam para trás, no seu girar imaginário ao vento do cimo da Portela.
Carolina Freitas aponta o jipe às curvas, altos e baixos da Estrada Regional 111. Cruzamos a Serra de Fora do Porto Santo, a mais próxima do sul da Vila Baleira e da faixa urbanizada da ilha. Curva atrás de curva, entramos na outra Serra, a de Dentro. Em tempos, as encostas e o vale desta serrania interior abrigavam abundantes agrícolas.
O solo chegou a ser fértil ao ponto de justificar o trabalho de erguer conjuntos de socalcos. preparados para reter a chuva e a humidade que agraciassem as vertentes oeste da ilha, bem mais irrigadas que as a oriente.
De tal maneira que subsistem na sua base, dois grandes reservatórios que a rara pluviosidade abastece. Quase só essas vertentes do oeste eram plantadas com cevada e outros cereais de sequeiro.
O Cenário Mais Inóspito do Centro e Norte de Porto Santo
Com o tempo, a ilha do Porto Santo tornou-se mais árida.
Em simultâneo, a preponderância do turismo reforçada sobretudo pela grande praia da costa sul de que nos continuávamos a distanciar, retirou sentido à agricultura trabalhosa da ilha.
A ER 111 serpenteia um pouco mais e flecte para oeste. Sem que o esperássemos, deixamos de a acompanhar.
Carolina entra para um desvio de terra batida, ascendemos umas dezenas de metros. A guia detém o jipe.
Da Estrada à Vereda
“Cá estamos. Vamos a isto? desafia-nos, com a sua energia contagiante de sempre. Estamos a meio da tarde. Faz um calor abafado por nuvens de um cinzento-claro que só de quando em quando concedem ao sol uma espreitadela.
Acima e pela frente temos uma longa vertente sulcada e listada por incontáveis colunas de rocha que a erosão desgastou ou, a espaços, fez sumir.
Pouco a pouco, o caminho sobe na vertente. Em tempos, deixava os caminhantes expostos a precipícios consideráveis, razão porque foi dotado de uma vedação de madeira, do mesmo tom que a superfície da encosta, de tal maneira camuflada que a distância a faz desaparecer.
Afiançam registos e a memória dos ilhéus que, noutra era, este mesmo trilho terá sido escavado na ladeira pedregosa para permitir que os burros da ilha carregassem a cevada entre a Terra Chã em que era cultivada e o norte da ilha. Hoje, no fundo do vale, a própria estrada ER 111 emula os meandros elevados da vereda.
A sucessão interminável das colunas prismáticas da Rocha Quebrada, mesmo se intrigante e deslumbrante, acaba por tornar o cenário por diante repetitivo.
A reacção natural é virarmos a atenção para as vistas pelas costas e para as do lado de lá do vale.
Atrás de nós, destacado acima de um vislumbre do mar do norte, destacava-se o Pico Juliana (316m), pontiagudo, sulcado por socalcos que se estendiam até ao seu cume rochoso. E repleto de arvoredo juvenil, supomos que pequenos pinheiros-de-Alepo.
Carolina fala-nos também do mais baixo Pico da Gandaia que – dizem as más-línguas da ilha – recebeu tal baptismo por ser um dos eleitos pelos casais de Porto Santo para namoricos e afins.
Os Inevitáveis e Incontáveis Coelhos
Não obstante a sua dureza inóspita de quase rocha, sempre que o declive da vertente se suaviza um pouco, do nada, surgem os prolíficos coelhos do Porto Santo, descendentes do casal que se diz introduzido por Bartolomeu Perestrelo, futuro capitão donatário do Porto Santo.
Sabe-se que, apesar de terem assegurado uma fonte fácil de carne, como se esperava, os coelhos reproduziram-se de forma exponencial.
Se o Porto Santo já não era propriamente luxuriante, menos vegetação passou a ter quando centenas, milhares de espécimes passaram a sobreviver da pouca que existia, da nativa da ilha e da dos cultivos que foram introduzidos, casos da vinha, da cana-de-açúcar e das mais diversas experiências hortícolas.
Desde então bem alimentados, os coelhos contemplavam-nos, por breves momentos, de orelhas bem levantadas. Logo, saíam disparados encosta abaixo para uma qualquer toca do seu contentamento.
Continuamos a ascender. Tínhamos começado em redor dos 200 m acima do nível do mar.
Sabíamos que o mais alto a que o percurso chegava eram os 450 m do Pico Branco, a segunda maior elevação da ilha. Em termos de esforço físico, a conquista deste quase monte estava longe nos intimidar.
O Cimo Panorâmico do Cabeço do Caranguejo
Prosseguimos com a caminhada e à conversa, sempre que os pulmões bombeavam oxigênio suficiente para as duas actividades. Interrompemos a tagarelice no assalto final, bem mais íngreme que até então, ao Cabeço do Caranguejo, uma orla pedregosa que nos desvendou as primeiras vistas para o lado nordeste da arriba.
Contornamo-lo. Inauguramos a descida para esse lado. Uma bifurcação do trilho estabelecia os caminhos para o Pico Branco e para a Terra Chã, esta, uns 400 metros para baixo e para o interior.
Como previsto, tomamos o do Pico Branco, que continua pelo meio de uma inesperada floresta de ciprestes-da-Califórnia enormes e viçosos, empoleirados na encosta, a comporem um inesperado Porto Santo frondoso e verdejante.
Aqui e ali, complementado por escadarias, o trilho ziguezagueia ajustado ao cimo do monte. Revela-nos perspectivas vertiginosas das falésias e enseadas acima da Ponta do Miguel, batidas por um Atlântico que um qualquer truque da luz exibia num azul resplandecente.
Víamo-lo salpicado do branco da espuma marinha que envolvia os grandes rochedos e até ilhéus que colonizavam o oceano, um domínio ermo esvoaçado por espécies marinhas felizardas: cagarras, andorinhas-do-mar, almas-negras, roques-de-castro, rolinhas-da-praia.
E outras, no grupo das rapinas, as mantas e os francelhos, toda uma avifauna em parte endémica que contribuiu para a recente candidatura de Porto Santo a Reserva da Biosfera da UNESCO, feita em Setembro de 2019, e sob apreciação da organização.
A Conquista do Pico Branco e a Ameaça Pirata
Vencido um derradeiro meandro, conquistamos o Pico Branco.
Aos 450 metros do cume, confirmamos a pedra esbranquiçada que o forma, em certas secções mais expostas à humidade, coberta de urzela, o líquen que lhe inspirou o baptismo, em ambos os casos contrastantes com a terra e rocha vermelha e vulcânica abundante no caminho para o cume.
Do cimo achatado e murado do Pico Branco, deslumbramo-nos com a vista sobre o sul. A Terra Chã e a Ponta dos Ferreiros, o vislumbre do Ilhéu de Cima, no prolongamento da Ponta do Passo.
E, para o interior da ilha, mais distante, o Pico do Facho (516 m). Este que é o cume supremo de Porto Santo ficou assim para a historia por ter servido para avistar a aproximação de navios piratas do Porto Santo e para alertar os habitantes para a sua aproximação.
O aviso fazia-se com recurso ao fogo de grandes fachos, visíveis a qualquer hora do dia, não fossem os piratas magrebinos apanhá-los desprevenidos.
As matamorras como a que resiste na Casa da Serra que avistamos do Miradouro da Terra Chã, permitiam aos portosantenses esconderem os mantimentos e outros bens essenciais à subsistência na ilha. Não eram garantia de segurança, longe disso.
Sabe-se que um dos lugares preferidos para refúgio dos bárbaros chegados de África era o Pico do Castelo (437m), em que subsistem ruínas de uma fortaleza erguida durante o século XVI, já a ameaça dos piratas atormentava há muito a vida e o sono dos colonos.
Mesmo com o Porto Santo já dotado do pequeno castelo no cimo do morro, numa determinada incursão e pilhagem pirata de 1617, quase todos os portosantenses foram levados como escravos para terras africanas infiéis que, dali, continuam a distar pouco menos de 500km.
O Esconderijo dos Homiziados e os Frades Naufragados
Abaixo da Terra Chã, existe uma furna que se popularizou como dos Homiziados. Terá servido de esconderijo dos piratas mas também, como o nome indica, de abrigo para os fora-da-lei da ilha. E, não bastassem as tragédias trazidas pelos piratas, conta uma lenda que, em tempos, o tecto dessa tal gruta se abateu sobre alguns infelizes abrigados.
São raros, no Porto Santo, os nomes de lugares dados à toa. Em cada baptismo, a ilha faz questão de eternizar o seu passado.
Nas imediações da Terra Chã, fica outro desses exemplos, o Porto de Frades. A quem hoje o encontra, parece apenas e só uma enseada com beira-mar de calhau, água cristalina e um visual ocre-amarelado com o seu quê de misticismo. E, no entanto, o nome que ostenta deixa uma pista para outro dos episódios ainda hoje debatidos da história do Porto Santo.
Segundo narram registos de então, durante a sua segunda visita à ilha, Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira encontraram naquela mesma calheta dois frades portugueses.
Os monges tinham zarpado de Portugal com o rumo das ilhas Canárias, com a missão de contribuir para a conversão dos indígenas Guanches, nativos daquele arquipélago e que então continuavam a resistir à ocupação dos colonos espanhóis e franceses.
Pois, segundo esclareceram, a embarcação em que seguiam teria naufragado. Ainda assim, conseguiram alcançar o Porto Santo.
Socorridos pelos homens de Zarco e Tristão, os frades acederam a acompanhar a expedição portuguesa e a se fixarem na ilha da Madeira em vez de nas nas Canárias.
A sua presença na Madeira suscitou que outros frades para lá se mudassem do continente. Mais tarde, a congregação que integraram veio a fundar o Convento de São Bernardino, na região de Câmara de Lobos.
Em Porto Santo, um legado religioso comparável é o da Capela de Nª Srª da Graça cujas fundações se estimam anteriores a 1533. Estava, todavia, escondida para oeste da Serra de Fora que, dali, não conseguíamos avistar.
Tínhamos deixado o jipe abaixo do Pico Juliana.
Vimo-nos, assim, obrigados a um regresso de 2km e pouco pelo caminho que ali nos levara.
Cumprimo-lo no mesmo modo da ida: deslumbrados pelas obras de arte geológicas impressionantes de Porto Santo.
De olho nos coelhos que nos mantinham sob vigia.
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