Só por si, a longa travessia do túnel submarino que liga a ilha de Streymoy à de Vágar justificava a viagem a partir da capital faroense Torshavn, mesmo que o tivéssemos já cruzado por duas vezes.
Esta que era a terceira ocasião, movia-a uma descoberta excepcional.
O túnel deixa-nos sobre a costa norte de Vágar, pouco depois da foz do rio Kálvadalsá e na iminência do de Marknará.
Rios não faltam no arquipélago das Faroé, onde a neve ou a chuva são permanentes e mantêm o tapete branco, no curto Verão, verdejante, das suas ilhas imaculado. Cruzamos o túnel do cimo ao fundo de Vágar, pela estrada 11 abaixo que, mal deixa para trás o leito do Marknará, segue o vale aprofundado pelo Stórá.
Sandavagur surge onde este rio se intersecta com o de Gáansá e o de Fossá, à entrada da baía arenosa e dupla que inspirou o baptismo da povoação.
Contornamos a primeira boca da baía. Na seguinte, encontramos o vilarejo vizinho de Midvagur, com o seu casario colorido e de telhados em A, disperso ao longo da via, desde o alto da encosta, na direcção do lago que perseguíamos.
Como os rios, abundam os lagos nas Faroé. Com 3.4km2, Sorvagsvatn é, de longe, o maior, três vezes mais amplo que o segundo, situado na mesma ilha de Vágar.
Devido à proximidade com Sorvágur, a povoação no seu extremo norte, o lago faroês supremo é assim conhecido. Mas não só. Nas paragens por onde andávamos, de acordo com as terras a leste do corpo de água, os moradores preferem o nome Leitisvatn.
Com frequência, de maneira a evitarem a já histórica disputa, limitam-se a pescar as suas trutas-mariscas e a trata-lo por vatn, que é como dizer apenas e só o lago. E, no entanto, apenas um lago é coisa que este vatn nunca será.
Olhando para um qualquer mapa de Vágar, percebemos a sua inusitada forma em S aberto. Como se não chegasse, o fundo desse S esconde outra peculiaridade.
Continuamos até ao extremo oposto de Midvagur. Já o casario se desvanece quando damos com o desvio do asfalto para o caminho rural que procurávamos.
A Caminho do Estranho Limiar de Sorvagsvatn
Passado um dos incontáveis portões de gado das Faroés, esse trilho torna-se uma linha estreita e ziguezagueante ao longo de uma vertente suave. E demasiado óbvio para nos perdermos.
Por algum tempo, uma crista ervada faz de barreira visual para o que estaria por diante. Umas centenas de passos depois, já no seu cimo, vemos pela primeira vez o lago, de água azul clara, tranquila, contida por margens curvas quase perfeitas.
A espaços, cruzamo-nos com ovelhas lãzudas, umas negras, outras, de um branco bastante sujo, entretidas a devorar a erva viçosa da paisagem.
A nossa passagem e inevitável abordagem fotográfica suscita-lhes uma curta pausa no repasto, pouco mais que isso. Afinal, percorríamos um dos trilhos realmente concorridos de Vágar e das Faroé em geral.
Por estes lados, os ovinos estão há muito habituados ao vaivém constante de humanos.
Sem que o esperássemos, um casal catalão que tínhamos encontrado na ilha de Kalsoy, junto à estátua da mulher-foca Kópakonan de Mikladalur, aparece do sentido contrário. “Apostamos que não vai ser a última vez que nos vemos!” atiram-nos, ligeiramente ofegantes, em castelhano, que o catalão não serviria para comunicarmos.
“É a primeira vez que aqui vêm?” perguntam-nos ainda. Ao que respondemos que sim. “Vocês já viram bem a sorte que têm? Nós, é a terceira. Nas duas primeiras, uma, chovia a potes, a outra, estava tudo ventoso e escuro. E, vocês, sortudos, chegam e apanham logo com um dia assim. Este tem que ser um dos melhores dias do ano das Faroé, nem há lugar para dúvidas.”
Confirmamos a análise dos vizinhos ibéricos, partilhamos uma gargalhada efusiva e mais alguma galhofa bem-disposta. Como sempre aconteceu até no plano histórico, os catalães seguem o seu destino.
Nós, portugueses, o nosso.
Traenalipa e Atlântico do Norte à Vista
A determinada altura, o trilho desvenda-nos uma fenda sombria no relevo e, para além dela e do que parecia o fundo do lago, a linha longínqua do horizonte a separar o Atlântico do Norte do firmamento pouco ou nada nublado acima.
O trilho aponta-nos à base da tal fenda. Lá chegados, percebemos que se tratava de um corte geológico, uma abertura profunda reveladora das falésias que delimitavam a ponta sul recortada de Vágar, não tarda, promovida a um promontório empinado sobre o mar.
O trilho flecte para o cimo. Desgastado por sucessivos passos, torna-se lamacento e escorregadio. Com cuidados redobrados, atingimos o seu fim, junto à beira elevada e vertiginosa dos penhascos de Traenalipa.
Ditava aquele término que nos deveríamos deparar com a vista mágica, a tal visão ilusória de Sorvagsvatn que deixa os forasteiros de queixo caído.
Antes que tudo, constatamos a altura do abismo imediato, tão intimidante como mortal. Quando controlamos a ansiedade, levantamos o queixo e perscrutamos a vastidão do panorama.
Um Lago em S e acima do Oceano
Por diante, para norte, víamos a quase meia-lua do lago contida entre vertentes gentis, verde-amareladas, sob um céu azulão pejado de novelos brancos.
Daquele miradouro natural, a excentricidade do lago reforçava-se. A meia-lua parecia alongar-se em suspenso, acima do recorte das falésias que o oceano invadia com bruar considerável.
Quando contemplada de maior distância, a franja rochosa que serve de tampão ao Sorvagsvatn quase se perde de vista. Dá, assim, a sensação adicional que o lago está a centenas de metros acima do mar e que nele se funde.
Na realidade, no seu ponto mais próximo, são apenas trinta os metros que separam a água doce da salgada. E, como, entretanto, confirmaríamos, a franja rochosa e escarpada no fundo da meia-lua lacustre contém o Sorvagsvatn de forma estável.
Aparecem outros caminhantes. Acumulam-se os pretendentes ao lugar fotográfico fulcral que ocupávamos que, em dias bem límpidos, permite ainda avistar seis outras das dezoito ilhas que compõem as Faroé: Streymoy, Hestur, Koltur, Sandoy, Skuvoy e Suduroy.
Traenalipa Abaixo, em Busca da cascata de Bosdalafossur
Cedemos-lhes o privilégio.
Damos azo a uma sucessão de selfies e fotografias tiradas cada vez mais sobre o precipício de Traenalipa (142 metros) que nos arrepiam a bom arrepiar, até porque, por essa altura, estávamos a par do contexto na génese do termo Traenalipa (Penhasco dos Escravos).
Crê-se que o nome teve origem na era Viquingue das Ilhas Faroé e no alegado costume macabro de os viquingues ali empurrarem para a sua morte escravos condenados.
Deixamos de acompanhar as desventuras livres e algo inconscientes dos caminhantes recém-chegados.
De regresso ao trilho, procuramos o desvio que levaria à confluência da beira-lago elevada com o único sector em que o Sorvagsvatn escoa.
O trilho depressa deixa de nos fazer sentido. Em vez de o seguirmos, descemos por socalcos, fendas e plataformas irregulares patrulhadas por gaivotas, andorinhas-do-mar e outras aves marinhas.
Muitos pseudo-degraus depois, damos connosco paredes-meias com o oceano. Ali mesmo, o lago estreita num curto rio que flui sobre um leito basáltico, junto a uma formação de rochedos afiados conhecida por Geituskoradrangur.
Assume o caudal vertical da cascata de Bosdalafossur e despenha-se de trinta metros de altura, com espalhafato, contra as vagas do Atlântico do Norte.
O extremo oposto do lago, marca-o um inusitado símbolo equino. Lá nos deslumbra o empinar da estátua prateada de Nykur criada pelo artista local Pól Skarðenn. O Nykur é uma criatura mitológica com estranhos cascos invertidos.
Tal como contam as lendas faroesas, aparece de quando em quando nas margens do lago Vagar. Ali submergido, exibe a sua elegância para atrair transeuntes a fazer-lhe festas ou até a tentar montá-lo. Quando os inocentes faroeses o tocam, a sua pele pegajosa agarra-os a um turbilhão rotativo que os arrastar para o fundo do lago.
O Nykur tem, no entanto, uma fraqueza. Se alguém gritar o seu nome, perde o seu poder demoníaco e recolhe às suas profundezas sem causar vítimas.
Ao longo do tempo, esta lenda passou a ser usada pelos pais e avós para conseguir manter as crianças afastada de rios, lagos e da beira-do mar, nas ilhas Faroé, quase sempre perigosos.
O Passado Bélico do lago Sorvagsvatn e de Vágar
O lago Sorvagsvatn e os seus arredores da ilha de Vágar são há muito conhecidos. Desempenharam, aliás, papéis de relevo na história destas paragens boreais.
Em plena 2ª Guerra Mundial, os britânicos mantiveram milhares de soldados nas ilhas Faroé, concentrados sobretudo em Vágar. Lá construíram uma pista de aterragem a oeste do lago, complementada por uma estação de apoio a hidroaviões.
Em 1941, uma tal de aeronave Catalina do comando costeiro da Royal Air Force aterrou pela primeira vez sobre as águas de Sorvagsvatn.
As infraestruturas erguidas pelos súbditos de Sua Majestade seriam, mais tarde, usadas como base para aquele que é, ainda hoje, o principal aeroporto das ilhas Faroé, o Vága Floghavn – assim lhe chamam os faroenses – e o nosso porto de ingresso no arquipélago.
Dias depois, muito contra vontade, seria também o nosso ponto de saída das Faroé, iniciada com uma descolagem entre as nuvens que nos prendou com um derradeiro vislumbre do trio inverosímil de Sorvagsvatn, Traenalipa e Bosdalafossur.