Os dias maléficos de chuva tinham finalmente dado de si.
Prendados por um sol sub-tropical radiante, aventuramo-nos numa feira realizada no bairro “italiano” de Santa Felicidade.
Ali, desfasado dos transeuntes pelo visual anacrónico, um trio pitoresco toca clássicos rurais vinícolas da Ligúria.
Anima-nos um acordeão e uma viola, e um vocalista de boina que, durante toda a actuação, adopta uma pose tão fidedigna como o traje e conserva uma mão no bolso enquanto, com a outra, segura um copo de vinho.
Em grande parte moradores da capital “europeia” do Brasil, os transeuntes reconhecem-se na atmosfera que o pequeno trio recria. Passeiam-se e espreitam cada uma das bancas com interesse redobrado.
Convivem e provam o que mais os atrai, incluindo pinhões dos mais variados tipos.
A Origem Colonial Portuguesa de Curitiba. Entre Araucárias
Curitiba foi fundada por colonos portugueses, em 1693, entre milhares de pinheiros araucária imponentes. O seu próprio nome advém dessa abundância. Os indígenas tupi chamavam-lhe a terra dos pinhões.
Os portugueses ainda tentaram instituir Vila da Nossa Senhora da Luz dos Pinhais mas, a meio do século XVIII, era já o nome tupi que vigorava.
Por essa altura, a faixa costeira da zona era pouco povoada. A economia dos poucos pioneiros portugueses e dos caboclos aqui e ali em conflito com os nativos baseava-se na venda de madeira e na pecuária.
Mas, a partir de 1853, por decreto do Imperador D. Pedro II, a região assegurou a autonomia face à província de São Paulo.
A falta de mão-de-obra provava-se então de tal forma prejudicial que o governador encorajou a vinda de forasteiros e aderiu ao programa oficial de fomento à imigração europeia.
O velho continente mantinha-se assolado pela desigualdade social e por sucessivas guerras que alimentavam a pobreza. Como era de esperar, milhares de almas ansiosas por incentivos semelhantes, zarparam em direcção ao Atlântico do Sul.
E o Influxo Migratório Multicultural que se Seguiu
Em 1871, chegaram ao Paraná 164 famílias de polacos, seguidos de genoveses e de ucranianos, estes últimos reforçados por duas levas distintas após o fim de ambas Grandes Guerras.
Nesses períodos, instalaram-se mais alemães, suíços, eslavos, suecos e franceses, bem como árabes provenientes do Líbano e da Síria, holandeses, japoneses e espanhóis, para mencionar apenas as comunidades mais representadas.
O primeiro dos fluxos conferiu um estímulo decisivo no aproveitamento da terra fértil.
Os recém-chegados plantaram-na com café, erva mate e soja em vastas áreas até do interior do estado.
A Segunda Vaga e a Recente Inversão da Migração
Curitiba está situada no cimo de um grande desfiladeiro que surgia na rota que ligava São Paulo ao Rio Grande do Sul. Numa altura em que o café e a criação de gado despontavam, também se assumiu como uma paragem incontornável dos gaúchos e suas manadas.
A meio do século XIX, uma nova vaga de portugueses juntou-se aos pioneiros que haviam ocupado a zona litoral de Paranaguá. Rumaram para o interior atraídos pelo estímulo das plantações de café e instalaram-se nas áreas actuais de Londrina, Maringá, Campo Mourão e Umuarana.
A ironia das ironias é que, hoje, quando nos encontramos com brasileiros que se mudaram para Portugal desde há vinte anos atrás, muitos daqueles que conhecemos e com quem falamos, são provenientes desse mesmo interior paranaense onde se limitavam a subsistir cada vez com mais dificuldades:
“ah vocês conhecem Iguaçu, Londrina também, sério?” pergunta-nos, surpreendido, o caixa de uma das frutarias de Benfica em que, durante o Verão, nos abastecemos de quando em quando. “vejam só que eu vivi toda a minha vida em Londrina, ali tão perto, e nunca deu pra ir a Iguaçu …
Na altura em que tivemos que decidir, o Brasil entrou numa crise séria.
Apesar de Curitiba estar bem acima de quase todo o país, nessa altura, já tínhamos conhecidos em Lisboa. Lisboa dava mais garantias.”
Curitiba: Cidade com uma das Qualidades de Vida Mais Elevadas do Brasil
Mais tarde, subimos à Torre de telecomunicações e panorâmica da Telepar (hoje Oi, ou ainda das Mercês) na companhia de uma funcionária do turismo local.
Já orientada em termos profissionais, Delianne não se esquiva a elogiar o cenário urbano em que cresceu, contra a lógica do caixa emigrante que conhecíamos em Portugal: “é um lugar especial, Curitiba.
Quem consegue fazer vida boa aqui, tem muita sorte, mesmo. Quem dera que todas as cidades do Brasil fossem assim tão seguras e evoluídas.”
Desvendamos a frente de arranha-céus comedidos dispostos de forma mais ou menos improvisada no distrito comercial da quase megalópole, a prova mais evidente da sua já longa prosperidade.
Daquelas alturas, também nos é fácil constatar como os espaços verdes se tornaram numa espécie de fetiche em detrimento da mais selvagem especulação urbanística.
Neles, mais que encontrar simples retiros de lazer, os moradores habituaram-se a conviver com o seu passado e com o dos seus concidadãos.
Tanto o brasileiro, como o anterior.
Um Legado Cultural e Étnico Indígena e dos Quatro Cantos do Mundo
Deixamos o mercadinho animado do Bairro da Felicidade e rumamos ao enorme Parque Tingui. O parque foi dedicado ao povo tupi-guarani.
Assim o prova a estátua de bronze do cacique Tindiquera colocada junto ao porta de entrada. A estátua reproduz o líder da tribo Tingui (“narizes afiados”) que controlava a região quando os primeiros portugueses ali aportaram.
Essa homenagem não invalida a presença do Memorial Ucraniano, uma igreja ortodoxa de madeira trazida do interior do estado para homenagear o fluxo de imigrantes ucranianos e que os seus descendentes continuam a visitar para lá deixar as suas preces e mensagens escritas.
Deparamo-nos com fenómenos semelhantes nos distintos bosques dos arredores atribuídos às diferentes comunidades da cidade: tanto são “alemães” e recontam a história dos irmãos Grimm, como se revelam “italianos” e abrigam uma enorme panela de polenta, como a que fervia na Feira do Bairro da Felicidade.
Há também um português, munido de oito pilares decorados por azulejos com versos de poetas lusófonos ilustres dos séculos XVI ao XX e que identificam os PALOP’s.
E um polonês, caso do baptizado em honra do papa João Paulo II após a sua visita à cidade em 1980.
Os Poloneses Prolíficos de Curitiba e do Paraná em Geral
Com o passar do tempo e o desconhecimento do continente europeu levou a que o curioso termo tivesse sido adaptado pelo povo para definir os brasileiros de cabelo e olhos claros oriundos do Leste da Europa, não necessariamente da Polónia.
O próprio Clemente, o anfitrião com sangue e “cantar” italiano que nos ajudou a explorar muito do estado do Paraná, recorria ao termo para explicar a normalidade de famílias que mais pareciam ter saído de Kiev ou de Kalininegrado. “Ué, são poloneses, né?
O Brasil não é só os vossos descendentes, negro, índio e mulato. Os poloneses cá do sul são isso assim.”
Quando o pretexto não é o étnico, Curitiba edifica e requalifica em nome das artes, se assim se justificar, sem qualquer pretexto, desde que a obra contribua para a dignificação da cidade e dos curitibanos.
Ópera de Arame, Niemeyer e o Ambiente Futurista de Curitiba
Onde existia uma velha pedreira, o município construiu, em ferro e vidro, a exuberante Ópera de Arame inspirada na de Paris.
Passamos pelo Jardim Botânico Fanchette Rischbieter, onde uma estufa reluzente é o coração de um espaço com cerca de 25 hectares que concentra os atributos da flora regional e as principais plantas do Brasil.
E no estilo arrojado que tornou famoso o autor, o museu Óscar Niemeyer – ou “do olho”, como é conhecido localmente – surge semi-suspenso pela sua sofisticação arquitectónica.
Estes são alguns exemplos.
A riqueza patrimonial e o dinamismo de Curitiba parecem não ter limites. Em jeito de recompensa, em 2003, a UNESCO elegeu-a como a Capital Americana da Cultura.
O prémio actuou como incentivo extra. Daí para cá, muitas mais foram as obras e eventos que o continuaram a justificar e a dar sentido aos dias atarefados dos residentes que sustentam o quinto maior PIB do Brasil.
A contar pelas estações-tubo de autocarro futuristas em que aguardamos bem abrigados da chuva, pela quantidade de ciclistas que percorrem a vasta rede de ciclovias local, diríamos mais facilmente que estávamos no Japão ou em Berlim que numa capital de estado brasileira.
Curitiba é um caso à parte.
Ao contrário do que se passou com a vizinha São Paulo, com o Rio de Janeiro e também com a mais jovem Brasília, até há algumas décadas atrás, Curitiba tinha crescido e chegado a quase 2 milhões de habitantes de forma quase imaculada.
Hoje, apesar de ter cedido à pressão populacional e à invasão de algumas favelas, continua a destacar-se por uma qualidade de vida e diversidade que é única no território brasileiro e que respeita os seus próprios antecedentes históricos.
Entre tantos jardins e monumentos arrojados, arranjamos tempo para passar a Praça Tiradentes, admiramos a Catedral Metropolitana e avançamos pelo túnel pedestre até ao velho Largo da Ordem.
Ali, muitos dos edifícios seculares da cidade foram restaurados e aprimorados e o calçadão negro serve de base para mais um mercado, este belo e amarelo.
É a cor da maior parte do casario que o cerca e das bancas em que alguns vendedores montam os seus negócios, bem mais confortáveis que dezenas de outros comerciantes de roupa e livros usados que os expõem directamente no chão para consulta e regateio de centenas de acocorados.
Logo ao lado, uma loja desvia-nos, por momentos, a atenção da feira e da sua encantadora genuinidade.
A calçada portuguesa que a precede, o seu nome e a mercancia em que se especializaram, dizem-nos, uma vez mais, muito de Curitiba: “Gepetto: Brinquedos”.