A estrada que desce de Höfn para a costa sul da Islândia já não serpenteia ao longo dos fiordes profundos do leste, como até então.
Os espaços exíguos entre o mar frígido do Atlântico Norte e o sopé das vertentes aumenta e dá lugar às primeiras grandes superfícies de aluvião, areais negros sem fim, sarapintados por colónias aleatórias de calhaus que, por alturas de Junho, os caudais criados degelo estival tomam de assalto.
Passamos por mais granjas dispostas contra as encostas e, aqui e ali, irrigadas por quedas de água suaves. De novo, por montanhas abruptas de bases verdejantes e topos nevados.
Avançamos por estes domínios boreais ainda e sempre maravilhados pela imponência da paisagem, quando, subitamente, reparamos nas primeiras frentes de rios de gelo que se insinuam, com timidez, entre vales apertados.
Ao nível da via costeira, o cenário volta ao verde predominante mas já nos restam poucas dúvidas de que, por detrás da cordilheira, se esconde o majestoso Vatnajökull.
Jökursarlón e o Anfitrião Karl Gudmundsson
Dali em diante, a visão repete-se algumas vezes, até que chegamos às imediações da lagoa de Jökursarlón, onde o glaciar perde a timidez e se aproxima do mar que sonda com icebergues dissidentes que flutuam ao sabor da maré e das correntes.
Alguns, destemidos, chegam a percorrer o estreito contíguo e, com a vazante da baixa-mar aventuram-se no grande Atlântico do Norte. Outros, mantêm-se solidários numa vasta comunhão de retalhos de gelo azulados.
Já nas imediações da lagoa, Karl Gudmundsson acolhe-nos no atrelado que a empresa que serve usa como balcão e vestiário. Enquanto nos preparamos para a incursão num barco insuflável zodiac em Jökursarlón, entramos em modo de galhofa com o anfitrião e guia.
Na época invernosa e menos turística da Islândia, Karl é pescador. Trabalha a partir das ilhas Westman, ao largo do centro da costa sul. Um nosso comentário sobre as semelhanças dos dialectos, inspira-o a desabafos curiosos: “o nosso islandês, se se parece com alguma outra língua, será com o norueguês e o dinamarquês, mas não é assim tão próximo.
Sabem, uma vez estava à mesa com pessoas da Noruega, da Suécia e da Dinamarca e eles safavam-se perfeitamente. Só eu é que não apanhava nada. É engraçado porque temos os mesmos antepassados mas, nós continuámos a usar as formas mais arcaicas.
Aliás, é um pouco assim que eles nos vêem. Para um norueguês ou dinamarquês, os islandeses são todos agricultores ou pescadores. A mim, para ser sincero, agrada-me que nos achem assim!”
Entre Icebergs até à frente sul do grande glaciar Vatnajökull
Chegam mais passageiros. Karl trata de os meter no zodiac.
E ao zodiac dentro de água. Zarpamos a baixa velocidade para o coração da lagoa, a ziguezaguear entre icebergues de todos os tamanhos e feitios.
Até nos aproximarmos da frente vasta do glaciar que vislumbramos a prolongar-se encosta acima, imaginamos que até junto das suas elevações supremas, o monte gelado de Hvannadalshnúkur (2119 m), o mais elevado da Islândia e o vizinho de ocidente, o vulcão Grimsvötn que, em 2004, fez derreter massivamente o gelo e provocou verdadeiros dilúvios fluviais.
A lagoa de Jökulsarlón que sulcamos tem menos de um século. É alimentada pela Breidamerkurjökull, uma das trinta línguas do grande glaciar Vatnajökull, a geleira suprema do continente europeu, com uma superfície incrível de cerca de 8100km2, nem mais nem menos que 8% do território da Islândia.
O Vatnajökull surge na zona mais chuvosa da Islândia, o sudeste. A sua vertente meridional recebe precipitações anuais superiores a 4000 litros por metro quadrado.
Só um outro glaciar islandês, o Myrdallsjökull, recebe uma precipitação superior e liberta mais água para o oceano que a vertente sul do Vatnajökull. De tal maneira que o Olfusa, o rio com maior caudal da Islândia, demoraria para cima de duzentos anos a conduzir toda a água do Vatnajökull para o Atlântico do Norte.
Já vertente norte do Vatnajökull é bastante mais seca. Esta diferença explica a assimetria da espessura do gelo: 800 metros, em média, no sul e apenas 500 metros no norte.
Explica-se também, assim, o porquê de o Vatnajökull oscilar para se equilibrar, de estar 17 metros sobre o nível do mar no sul e apenas 500m no norte.
Fogo Debaixo do Gelo
Ainda mais estranho: tal como acontece com vários outros glaciares da Islândia, o Vatnajökull subsiste malgrado a existência de diversos vulcões activos abaixo da sua calota glaciar.
Em 1996, um deles, o Grimsvötn, deu origem a uma torrente massiva que inundou as planícies de aluvião a sul. Em 2004, e 2011, este mesmo vulcão teve erupções consideráveis com plumas de fumo e cinza que atingiram os 20km de altitude e interromperam o tráfico aéreo durante vários dias.
O Recesso em Tempos Impensável do Vatnajökull
Até há algum tempo, o gelo do Vatnajökull chegava ao mar. A meio da década de 70, o colosso recuou.
Braços de água voláteis que escoavam em direcção ao oceano provocaram outra inundação violenta da paisagem. Obrigaram à construção de um viaduto enorme para completar a estrada Ring Road que dá a volta à Islândia em 1339km.
Karl já mal tem memória de quando o glaciar entrava pelo mar. As focas, essas, marcaram presença em ambos os sectores do ecossistema. Karl avista um espécime a dormitar sobre uma placa plana de gelo.
Acerca-se o mais que pode, o suficiente para os zooms das câmaras a bordo poderem dar uma ajuda aos fotógrafos.
O animal pouco ou nada se incomoda com o assédio longínquo. Um ou outro virar de cabeça na direcção da embarcação e logo regressa à pose original. Karl devolve-lhe o respeito sagrado.
Apanha uma pedra quase transparente da água e elucida os forasteiros sobre a sua incrível pureza e antiguidade, frequentemente renovada, diga-se de passagem.
O grande Vatnajökull tem vindo a recuar e, ao contrário do que se possa pensar, os vulcões pouco ou nada têm que ver com essa realidade que preocupa a comunidade internacional, os islandeses em geral.
E, em particular, os de Höfn e outras povoações próximas do Vatnajökull, dependentes do equilíbrio entre o volume milenar do glaciar e o do mar ao largo.
Danos no Velho Modo de Vida Islandês
Nos últimos tempos, à medida que as temperaturas no Árctico aumentam a um ritmo mais acelerado que em qualquer outra parte do Planeta, nem o rei dos glaciares resiste.
No Atlântico do Norte ao largo, o aquecimento das águas fez com que só as espécies de peixes mais resilientes permanecessem. Esse é, no entanto, o menor dos problemas. O glaciar derreteu de tal maneira que a terra se elevou do mar e é cada vez mais difícil fazer movimentar dentro e fora do porto de Höfn as traineiras de maior calado.
Em simultâneo, a redução extrema do volume e peso do Vatnajökull tem vindo a causar a drenagem de fiordes milenares, a alteração de sedimentos subterrâneos e até a danificar a canalização da cidade.
O dano é de tal forma sério que a as autoridades islandesas decidiram precaver-se com um novo porto em Finnafjord, num cenário inóspito da costa leste da ilha. Isto, a pensar na capitalização futura do tráfico marítimo internacional intensificado pelo derreter da calota polar do Árctico e pela navegação sistemática de embarcações comerciais e até de turismo.
Celebração Cantada da Grandiosidade de Vatnajökull
Um grupo de islandeses cantores em confraternização visita aquele cenário com o propósito de se registar com os icebergs em fundo. O fotógrafo de serviço tem algum trabalho para os alinhar no enquadramento ideal, como para resgatar a atenção dos participantes em simultâneo. Consegue-o, por fim.
Logo após, a comitiva, toda ela enfiada em fatos escuros, partilha piadas de improviso. Volta a organizar-se e oferece aos estrangeiros ali presentes um recital em coro inesquecível. Tão subitamente como tinham aparecido naquelas paragens, regressam ao autocarro e, como nós, fazem-se à estrada.
Há muito mais para descobrir no sul da Islândia e em redor do seu maior glaciar. O vasto Parque Nacional Skaftafell é o mais famoso do país e concede vários outros cenários deslumbrantes ao longo da frente meridional do glaciar, que tem mais de 100km.
Se não é o gelo é o degelo. A água frígida do Vatnajökull alimenta incontáveis rios de montanha com percursos aventureiros.
Deixamos o carro num parque de estacionamento quase vazio e vencemos um trilho íngreme que acompanha o fluir de um destes riachos. Um quilómetro depois, desembocamos num beco rochoso sem saída e vemos o caudal despenhar-se de uma falésia improvável.
Flui, ali, uma das quedas de águas mais excêntricas da ilha, Svartifoss, rodeada por colunas hexagonais de basalto formadas por fluxos de lava que arrefeceram muito lentamente mas que, agora, colapsam sem aviso e com demasiada frequência, razão porque as autoridades limitaram a aproximação às paredes negras.
Regressamos ao carro e à Ring Road. Ao poucos, o Vatnajökull fica para trás. As quedas de água que alimenta, essas, continuam a mergulhar de precipícios encharcados, por muitos mais quilómetros.