Conduzimos ao sabor das estradas secundárias e sinuosas da Martinica.
Já na costa sul, decidimos fazer um desvio e espreitar uma povoação piscatória chamada Sainte-Luce.
O dia mantinha-se cinzento, quase chuvoso. Quando nos deparamos com a baía, constatamos que as pinturas alegres dos barcos de pesca e dos armazéns abarracados da povoação lhe emprestavam uma inesperada vivacidade.
Faz espécie a Gérard Pierre ver-nos esperar num miradouro avarandado, com o carro semi-aberto nas imediações. Sem mais que fazer, o nativo abandona o refúgio solitário do seu Mercedes 190D e aborda-nos. “Também estão com problemas mecânicos? Eu, há uns tempos que já só uso este para me sentar e descansar. Tem que ir à oficina mas pedem-me 50 euros adiantados… com a minha reforma, não vou conseguir tão cedo.”
Perguntamos-lhe o que fazia. Diz-nos que tinha deixado, havia pouco, de trabalhar em instalações eléctricas. Bastam uns instantes para percebermos como lhe custava esquecer um seu passado cinéfilo mais distante. “Eu projectei os maiores actores do mundo lá na sala de Rivière Pilote.
Gerárd Pierre: de Desconhecido a Enciclopédia do Cinema
Se o Jacques Conrad – descobrimos mais tarde que se tratava de um empresário abastado originário da ilha vizinha Guadalupe – não a tivesse transformado num miserável parque de estacionamento, se calhar ainda hoje o fazia.
Não imaginam a quantidade de filmes que ali passei. Sei de cor as canções de quase todos e, ainda me lembro de muitos dos diálogos” desabafa com desgosto, para logo enunciar inúmeros nomes franceses dos clássicos lá exibidos, também dos seus protagonistas.
Conversa puxa conversa, Gérard resume-nos ainda a evolução da época do ecrã quadrado, das películas a preto-e-branco com sonorização ao vivo até ao Technicolor panorâmico que usou em abundância enquanto se manteve no activo.
Logo, volta a sequenciar mais títulos afrancesados de filmes de piratas mas também de Westerns, de romances, de longas-metragens de guerra e espionagem, de comédias e dramas, com ou sem sequelas: “La Filibustière des Antilles” (“A Raínha dos Piratas”), “Simbad, Le Marin” (“Simbad, o Marinheiro”), “Le Massacre de Fort Apache” (“Forte Apache”), “L’Homme des Vallées Perdues” (“Shane”).
E por aí fora. A lista é tão mecânica e melancólica quanto infindável.
De cada vez que lhe perguntamos algo, Gérard mostra-se ansioso por voltar à enumeração dos filmes. Por recuperar alguns dos seus protagonistas e momentos. atrevemo-nos uma vez mais a quebrar o enguiço.
Um Testemunho Inesgotável da Época Clássica do Cinema
Numa destas raras ocasiões, Gérard conta-nos que trabalhava em três sessões: ao meio-dia, às 6 da tarde e às 9 da noite. “mesmo assim, as salas estavam sempre cheias e não eram propriamente silenciosas”.
Aproveita para rir dos velhos tempos caóticos do seu cinema. E continua a trazê-lo à memória, guiado pelas questões que lhe colocamos.
“As pessoas não só falavam como aplaudiam as cenas mais entusiasmantes dos filmes. Era mesmo muito animado. Compravam coca-cola e bebiam-na com amendoins e pistachos servidos em canudos de papel. O álcool era proibido. Quando terminava a sessão, o chão estava quase sempre imundo. Precisávamos de limpar tudo vezes sem conta.”
Terminada a nova reconstituição do seu agradável passado, invade a mente do ex-projeccionista o esplendor de “Le Train Sifflerá Trois Fois” (“O Comboio Apitou Três Vezes”), um épico Western com Gary Cooper e Grace Kelly.
A canção desta longa-metragem cowboy sempre havia comovido Gérard. E é com prazer, óbvias falhas de tom e por cima da emissão martiniquenha do rádio do seu carro que nos entoa “Si tois aussi tu m’abandonnes”, o tema francófono do genérico.
A letra refresca-lhe mais uma vez a memória. Mal termina de cantar, repete o mote introdutório de que “nessa época havia tantos filmes”. Recupera, então, “Rio Bravo”, com John Wayne e mais alguns êxitos hollywoodescos com a dupla Lone Ranger e Tonto, entre outros.
A Saudade das Projecções e dos Velhos Êxitos de Hollywood
Perguntamos-lhe se acompanhava os filmes mais modernos. Gérard quase sai para fora da janela do velho Mercedes. “Se querem mesmo saber, desde que parei de trabalhar e as salas antigas desapareceram, o cinema deixou de me dizer alguma coisa.
Felizmente, dois companheiros meus vão chegar entretanto da Metrópole. Disseram-me que me tinham gravado em vídeo todos estes filmes que cá passava antes. Vão visitar-me um destes dias. Hão-de mos passar.”
Também essa perspectiva lhe serve de pretexto para mais alguns minutos de listagem dos títulos que esperava receber dos amigos e rever. Só a cessa quando o interrogamos sobre a sua actividade pós-projeccionista, como electricista.
O sol espreita entre as nuvens pela primeira vez desde o amanhecer. Precisamos de pôr cobro ao convívio para darmos atenção fotográfica à baía colorida de Sainte-Luce, nada que ver com a ilha de Saint Lucia, vizinha do sul da Martinica.
Ao ver-se confrontado com a iminência da despedida, Gérard reage e retoma a sua lengalenga cinematográfica.
Temos dificuldade em abandoná-lo à solidão automóvel e nostálgica a que parecia votado.
Em vez, contamos-lhe que, em Portugal, ainda assistíamos a esses clássicos mais antigos de quando em quando, na Cinemateca de Lisboa, mas que não era coisa muito frequente por culpa da profusão de novos filmes a que agora temos acesso, até mesmo aos da rival indiana Bollywood.
E da já bem antiga sobreposição da TV, claro.
À Descoberta da Sainte Luce dos Nossos Dias
Agradecemos-lhe a amabilidade e deixamo-lo com um até breve genuíno. Não contávamos nem demorar-nos muito na marginal humilde da povoação abaixo nem que Gérard dali saísse tão cedo.
Na baía principal de Sainte-Luce, vagueamos à beira-mar entre bancas de um mercado de peixe encerrado, ou de mini-bares que vendiam rum planteur e outras das especialidades martiniquenhas mais populares.
Para diante, no interior de um café incaracterístico, três ou quatro moradores acompanham uma entrevista televisiva ao sempre pomposo presidente de então, Nicholas Sarkozy.
Observamos pela janela um pouco da emissão. E também as reacções daqueles clientes das Antilhas às suas mais recentes demagogias.
Não tardamos a abandonar a política.
Ali perto, contornarmos um barracão pintado de amarelo e vermelho, também decorado com um autocolante atrevido de uma bebida que se promovia na região como sexualmente estimulante, “Bambu”.
No anúncio gasto pelo sol, uma mulher caribenha de biquíni segurava uma cana verde da planta.
Do outro lado da estrutura, Louisy Belina, mãe nativa, brinca com Ayleen, a sua filha a sério e com a filha-boneca a brincar da sua pequena. Detemo-nos por alguns minutos à conversa com as duas.
Sem que o esperássemos, antes de deixarmos Sainte-Luce ainda somos prendados com uma imagem digna da sétima arte.
Abrigado na privacidade de uma esplanada deserta e despretensiosa, instalado sob coqueiros reclinados e outras copas tropicais, um casal discute e troca carinhos pacificadores, enquanto o Mar das Caraíbas avança e recua com gentileza sobre a areia vulcânica e quase lhes afaga os pés.
Regressamos ao carro com vontade de a descrever a Gérard, de lhe perguntar se a acharia digna de projectar.
Ao contrário do que esperávamos, quando subimos ao miradouro em que com ele havíamos convivido, o Mercedes 190D permanecia no mesmo lugar. Gérard tinha saído de cena.