Harry, o motorista e guia encarregue de nos revelar Espiritu Santo e alguns dos melhores blue holes de Vanuatu apanha-nos à entrada do Deco Stop Lodge da capital, Luganville.
Instalamo-nos na sua velha carrinha e preparamo-nos para uma jornada longa e aos solavancos para o norte. Uns momentos de tagarelice depois, percebemos que não era propriamente um nativo da ilha mas que, ao tempo que lá vivia, estava mais que apto para a missão. “Sou de Pentecostes”, informa-nos e deixa-nos de imediato em êxtase.
“Vamos para lá dentro de uns poucos dias, sabe? Já saltou no Naghol?” (cerimónia de iniciação em que os jovens se lançam de torres feitas de troncos) perguntamos-lhe ansiosos. “Saltei uma vez, aos meus 19 anos e chegou. Aquilo não é para todos nem para todos os meses. Se bem que agora parece que alguns rapazes saltam mais vezes, coitados.”
Esperavam-nos três horas de caminho entre coqueirais e floresta cerrada, numa via paralela ao litoral leste que, de estrada, só teria o título. Harry percorria-a vezes sem conta. Já quase não sentia a turbulência legada pela época das chuvas mas estava consciente o quanto os solavancos afectavam a coluna dos passageiros.
Uma vez que a pressa era relativa, num confim do mundo melanésio excêntrico e exótico como aquele, tudo e mais alguma coisa nos deslumbrava. Ao mínimo pretexto, interrompemos a viagem para curtas escalas temáticas e fotográficas.
Pelo Litoral de Santo Acima
Tomamos a Canal Road. Passamos pelo aeroporto Santo-Peko em que tínhamos aterrado chegados de Port Villa. Avançamos ao longo da Baía de Palikulo até darmos com Surunda. Por altura de Saraotou, o canal há muito que ficou para trás e a estrada já não merece sequer um nome. Ou um código que seja.
A vegetação sortida cede lugar a grandes plantações de coqueiros plantados com geometria. Uns quilómetros depois, um cheiro a óleo de coco cozinhado empesta a atmosfera. A precisarmos de desentorpecer as pernas, apuramos com Harry o engenho que gerava o fumo e o odor.
Harry lida o caminho até um armazém básico, semi-aberto, desprovido de iluminação artificial. Subimos uma escada mal-amanhada de madeira. No nível superior, vemos uma vastidão de noz de coco, já separada da casca e em secagem. Harry encontra o trabalhador da fabriqueta e este dá-nos as boas-vindas.
Explica-nos que lá processam tanto a copra – a fibra resistente produzida a partir das cascas – como polpa, neste caso, para os mais distintos fins alimentares.
A conversa flui mas Harry impede que se estenda em demasia. Satisfeito pela inesperada companhia, o trabalhador lava uns nacos de coco e oferece-os para a viagem. Àquela hora, entre o pequeno-almoço e um distante almoço, o presente tem óptima aceitação. Some-se em três tempos.
Despedimo-nos. Deixamo-lo entregue à sua labuta. Regressamos à via litorânea de Espiritu Santo. Aqui e ali, o oceano Pacífico forma braços de mar arenosos que enchem e vazam com as marés. Harry tinha em mente descontrairmos numa lagoa ainda melhor.
O Revivalismo Possível da Guerra do Pacífico
Antes disso, leva-nos a ver uma das muitas heranças deixadas pelos americanos quando a 2ª Guerra Mundial se travou contra os Japoneses por todo o Pacífico e também nestas paragens. “Reparem que apesar das décadas passadas e da invasão da vegetação, esta pista está em muito melhores condições que a estrada em que seguimos, quem nos dera que os americanos tivessem construído mais coisas” desabafa Harry.
A pista estava limitada a uma vastidão que, mesmo sendo de uma mistura de betão e asfalto, alguma vegetação tropical arbustiva já invadira. Tinha um interesse sobretudo histórico que Harry pouco ou nada nos conseguia explicar.
Na prática, Vanuatu e Espiritu Santo, em particular, provaram-se determinantes no sucesso dos Estados Unidos em barrar o avanço dos japoneses. Como parte do esforço logístico dos americanos, foram construídos na ilha quarenta cinemas, quatro hospitais militares, cinco aeródromos, uma base de torpedeiros, oficinas e aquartelamentos. Uma parte reduzida destas infra-estruturas continua a beneficiar a ilha.
O exército nipónico manteve-se inexorável até 1942, quando conquistou os territórios da Papua Nova Guiné e das ilhas Salomão. Foi finalmente travado nas Batalhas do Mar de Coral e de Midway e obrigado a recuar.
Por três anos, até Setembro de 1945, em certas ocasiões, cerca de cem navios e mais de meio milhão de militares esperaram, em Espiritu Santo, pela sua vez de participar.
Um deles foi James A. Michener, um escritor que aproveitou a inércia para escrever “Tales of the South Pacific”, uma sequência de histórias e peripécias parte delas vividas em Espiritu Santo. Esta obra que conquistou um Prémio Pulitzer inspirou o famoso musical “South Pacific”.
Terminado o conflito, vários navios naufragados incluindo o USS President Coolidge – um enorme paquete de luxo convertido que embateu numa mina “amiga” – e as toneladas de material de guerra afundados no chamado Million Dollar Point, ainda contribuem para a crescente indústria do mergulho de Espiritu Santo.
Na Demanda dos Buracos Azuis
Na mesma estrada que conhecia de cor e salteado, Harry desvia e conduz-nos ao Blue Hole de Matevulu. Caminhamos por uma mancha de floresta tropical mais densa. Ao fim de algum tempo, uma abertura na profusão arbórea desvenda-nos uma lagoa com água cristalina, de um azul-turquesa escuro salpicado por folhas amareladas.
Além de árvores frondosas, envolve-a mais um dos paredões verde-claros de glória-da-manhã tão característicos de Vanuatu. Examinamos o buraco azul por algum tempo. Com a tarde no fim, o sol a pique, a torrar-nos a pele, não resistimos por muito tempo.
Despimos a pouca roupa que trazemos. Metemos o pé, só como descargo de consciência. Entramos cada um ao seu ritmo e descomprimimos os corpos e as mentes naquele enigmático SPA do Pacífico do Sul. Boiamos, nadamos. Voltamos a boiar. Inspeccionamos as margens pejadas de raízes e, em vão, o leito distante que não chegamos a avistar.
A determinada altura, a Sara é picada num dedo por um insecto qualquer de aspecto vesposo. A dor não alastra muito mas intensifica-se. Torna-se suficiente para nos interromper o deleite. De qualquer maneira, aquele não seria o último Blue Hole de Espiritu Santo em que mergulharíamos.
Nascentes de Água Enigmáticas e Irresistíveis
Os Blue Holes de Santo formam-se quando lençóis de água subterrâneos originários das cordilheiras ocidentais da ilha emergem como nascentes poderosas.
Estas nascentes moldam o seu caminho para a superfície na rocha calcária suave. Por norma, talham as lagoas circulares ou quase circulares há muito abundantes. Em simultâneo, no seu percurso subterrâneo, a água é filtrada pelo calcário. Torna-se pura e cristalina. A profundidade e a incidência da luz, azula-a.
Quarenta quilómetros para norte de Matevulu, mas ainda na província de Sanma, existe ainda o Blue Hole de Nanda, preparado pelos donos tribais ni-vanuatu para acolher visitantes, com passadiços, um bar e cordas baloiço. O de Riri fica só uns poucos quilómetros para sul.
Desde que a maré esteja cheia, também é acessível de canoa tradicional, por um braço de mar inundado de mangues e em que pendem lianas humedecidas. Da beira-mar de Espiritu Santo em que começam tais aventuras, vislumbramos a silhueta de Ambae que inspirou a ilha fictícia e inalcançável de Bali Ha’i, também ela criação literária de James A. Michener.
Novo dia, Novos Cenários: Bokissa e Malo
Até ao fim dessa tarde, seguimos até à Champagne Beach e regressámos a Luganville. Na manhã seguinte, mudamo-nos para Bokissa, uma pequena ilha a sul de Espiritu Santo. Instalamo-nos num resort monopolista, gerido com mão-de-ferro por uma proprietária australiana austera.
O hotel em si pouco tem que nos interesse. Em vez de por lá nos arrastarmos, saímos bem cedo num percurso de caiaque, à descoberta dos canais e manguezais em volta.
A leste, temos a ilha de Tutuba. A oeste, a de Aore. Rockys, o guia ni vanuatu desta empreitada, informa-nos com um grande sorriso alvo, quanto alvo podia ser, que íamos zarpar em direcção a sudoeste e que a distância era muita, pelo que começaríamos de barco.
Do Mar Aberto ao Mangue Cerrado
Dito e feito. Embarcamos numa lancha veloz, na companhia de Katie e Jamie, um casal aussie bem disposto, em lua de mel. Navegamos a grande velocidade sobre um mar ciano e liso que parece apertado pelo quase lilás do céu carregado de humidade.
Durante um bom tempo, não vemos vivalma. Sem que o já esperássemos, passamos por uma embarcação amarela que mais nos parecia uma gaivota recreativa, daquelas a pedais.
O barco segue à pinha. Devagar e instável a condizer. Habituados a viagens naqueles preparos, os passageiros saúdam-nos com a alegria e boa-vontade que nenhum ni-vanuatu precisa de simular.
Do mar aberto, chegamos a um ponto em que Aore e Malo quase se tocam e formam um canal. Rockys aproxima-nos do litoral arenoso de Malo, de uma zona em que a ilha surge como que rasgada e tem ao largo uma pequena sub-ilha. A lancha fica ancorada por ali. Retiramos os caiaques.
Continuamos a jornada pelo rio Malo acima, desta feita, à pagaiada. Avançamos por um manguezal apertado envolto de selva densa, de tal forma intrincada que o matagal nos chega a barrar o progresso.
A espaços, o canal reabre. Numa destas secções desafogadas, a “gaivota amarela” que tínhamos cruzado, passa por nós e volta a saudar-nos como se fosse a primeira vez.
O Blue Hole Furtivo de Malo
Rockys lidera a excursão com entusiasmo. Percebemos que é do seu agrado aquela evasão. Do céu aberto, regressamos a novo aperto vegetal claustrofóbico. “Preparem-se para o que aí vem!” avisa-nos o guia.”
Vencido um derradeiro conjunto, entramos numa grande lagoa de águas similares às de Matevulu mas cercada de uma enorme muralha viçosa de glória-da-manhã. Damos uma volta lenta a repousarmos do esforço e reconhecermos o lugar.
Logo, Rockys convida-nos a segui-lo. Leva-nos até uma enorme árvore com troncos e ramos desdobrados na horizontal. O guia tira a t-shirt e exibe o seu portentoso físico melanésio.
Chega a um extremo estratégico de um tronco e mergulha para o azul da lagoa. Nós os quatro, nem sequer hesitamos. Rendemo-nos à gravidade e enfiamo-nos na água.
Também o tempo jogava a nosso favor. Nadamos, chapinhamos, boiamos e conversamos naquele outro blue hole até as peles nos encarquilharem.